Paulo Ghiraldelli*
Nossa língua nossa vida – e nossa morte.
Plutão foi rebaixado da condição de
planeta passando a figurar como um asteróide. Isso foi feito da mesma
maneira que todas as outras classificações. Não consultamos os negros
quando os pegamos na África e os consideramos quase iguais a nós,
humanos. Não consultamos as borboletas quando decidimos que elas
poderiam ser pregadas e postas em vitrines ao invés de simplesmente
comidas, como fazemos com outros animais. Fazemos e desfazemos do mundo.
Nós realmente somos pouco democráticos ao decidirmos o destino
semântico do que vemos por aí. Não raro, por essa semântica, decidimos
também muito mais coisa.
Fazemos assim já há algum bom tempo. A
maior parte de nós nunca se perguntou se isso foi o melhor que
poderíamos ter decidido sobre nós mesmos, ao nos definirmos como
“aqueles que valoram e escolhem”. E o que essa maior parte e também os
que nela não se enquadram não sabem é que esse pendor às taxionomias tem
mais conseqüências sobre nós mesmos do que aquelas que nossa ciência e
jornalismo têm mostrado. Ou melhor, terá conseqüências.
O
que conto é que dentre as coisas do mundo uma delas resolveu se
insurgir contra essa nossa obsessão de falar de tudo sem saber o que o
tudo quer que falemos. Digo isso exatamente a partir de Plutão, ou
melhor, do que ocorre em Plutão hoje. Os plutonianos resolveram não
aceitar de modo algum que, do ponto de vista da Terra, eles não estejam
morando em um planeta. Isso parece claro em todas as redes sociais da
internet plutoniana, em especial na mais frequentada, o Plutobook.
A proposta que amadurece no Plutobook é a
de tratar o nosso planeta segundo os critérios etnocêntricos e
humanistas nos quais surfamos desde sempre. O objetivo é o de
ofender-nos tanto quanto eles se sentiram ofendidos. No entanto, os
plutonianos têm esbarrado em um detalhe. Até o presente momento, não
conseguiram convencer seus cientistas desse projeto. Esses plutonianos
ligados à ciência insistem em dizer que um dos critérios pelos quais o
nosso planeta é um planeta é que, ao menos para a ciência plutoniana,
possuir uma atmosfera é uma condição básica para que um astro seja um
planeta. O nosso planeta possui uma atmosfera, inegavelmente.
A disputa que se dá em Plutão no
momento, portanto, é esta: homens de ciência dizem que para mudar o modo
de tratar o nosso planeta é necessária uma alteração do conceito de
planeta, enquanto que o resto da população de Plutão acredita que isso é
uma perda de tempo, uma idiossincrasia de intelectuais, e que a decisão
pode ser tomada a partir do que estão todos falando no Plutobook.
Mas, até aí, o que isso importa para
nós? Até aí nada. Mas, a partir daí, tudo. É que também há no Plutobook
uma facção, que cresce vertiginosamente, de plutonianos que acreditam
que não basta apenas um troco semântico contra nós, que é necessário,
também, uma certa assepsia do sistema solar. Por que os simples
asteróides, e não só apenas planetas, têm o direito de ficar no sistema
solar? Pela nova nomenclatura plutoniana, nossa Terra não é mais que um
asteróide, e seria melhor que caísse fora do sistema solar. Primeiro,
por sua natureza espúria. Segundo, pelo seu pecado, o de, mesmo sendo só
um asteróide, ter ousado se classificar como planeta e, ao mesmo tempo,
destituir Plutão, verdadeiro planeta, dessa condição.
Essa facção do Plutobook advoga,
portanto, medidas mais drásticas contra a Terra. Não há dúvida de que
tudo se encaminha para uma proposta belicosa, pela qual Plutão
arrebanharia energias com o objetivo de construção de uma poderosíssima
arma atômica que, então, seria encaminhada em direção a nós, abrindo a
Terra em muitos pedaços.
É difícil dizer que não será essa a
proposta vencedora. Tudo começou apenas com uma disputa que parecia a de
torcida de futebol, mas depois as coisas tomaram um rumo inusitado e
mais dia menos dia os plutonianos começarão a construir a tal bomba.
Nada disso que conto é levado a sério
aqui na Terra. Vamos perecer por conta do nosso gosto em sermos o umbigo
do mundo. Ocorrerá não tanto pela selvageria plutoniana, mas pela nossa
indiscriminada prática de tornar a semântica nossa escrava, não nossa
inteligência. Vamos morrer pelas nossas palavras, aliás, vamos morrer
todos como vivemos. Nunca foi tão verdade, em um sentido extrapolado,
que os limites de nossa linguagem são os limites do nosso mundo.
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Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/nossalingua/04/08/2013
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