Rubens Ricupero*
Francisco ocupa vácuo de lideranças, principiando com aquilo que os políticos evitam: a autocrítica
Parte do encanto que emana do papa Francisco se deve ao contraste com o
deserto de liderança que o mundo atravessa. Prova disso se encontra na
própria Roma, da qual é o bispo, título que prefere por razões
ecumênicas. Lá, a Justiça acaba, sem apelo, de condenar Berlusconi,
quatro vezes primeiro-ministro.
Como foi possível que se degradasse tanto o posto antes ocupado por De
Gasperi e Aldo Moro? Um dos amigos diletos do réu italiano de
incontáveis processos é Putin, que sobrou como destroço do naufrágio de
70 anos da mais radical das revoluções, a que pretendia criar o "homem
novo".
Itália e Rússia são casos extremos, mas não únicos. O que é Angela
Merkel, comparada a Adenauer ou Willy Brandt? Ou Hollande, cotejado a De
Gaulle e a Mitterrand; Cameron, a Churchill; Mariano Rajoy ao pacto de
Moncloa e a Felipe González? Países que, tempos atrás, tiveram
governantes influentes como o Canadá de Trudeau ou a Suécia de Olof
Palme mergulharam no completo anonimato.
A China se especializa numa série infindável de clones com o mesmo terno
escuro e igual gravata vermelha. O 3º Mundo, que estreava com Nehru,
Nasser, Tito, Sukarno, descambou para a irrelevância. Ho Chi Minh virou
nome de cidade. A ONU, o FMI, o Banco Mundial, antes dirigidos por
personalidades fortes, foram entregues a gente que ninguém conhece. Do
Brasil, cuja vida pública se ilustrava com Tancredo, San Thiago Dantas,
Ulysses, para só mencionar alguns mortos, nem preciso falar.
As causas podem ser muitas e complexas, mas é inegável que se trata de
mediocrização sem precedentes talvez. Nos anos 1930, surgiram lideranças
políticas poderosas embora altamente malignas: Hitler, Stalin,
Mussolini. Hoje, nem isso.
Deixei para o fim Obama, o caso mais espetacular de frustração de
expectativas desde John Kennedy. Pode ser que no futuro os historiadores
julguem que ele tenha sido injustiçado; que a diferença de
circunstâncias não teria permitido a reprodução do New Deal e o
aparecimento de um segundo Franklin Roosevelt. O fato, porém, é que para
muitos de seus eleitores ou entusiastas, dentro e fora dos EUA, o
presidente é uma decepção.
A frustração vem de muita coisa: a timidez da reforma financeira, o
fracasso em reverter a escandalosa concentração de renda, a escolha para
postos principais dos homens de Wall Street responsáveis pela crise, o
programa de assassinatos a distância e agora a espionagem de tudo e de
todos no melhor estilo Big Brother.
Sobram a Obama os instrumentos do poder duro: drones para matar sem
risco ou meios eletrônicos para espionar. Apesar do absurdo Nobel da Paz
que lhe deram adiantado, faltam-lhe os elementos intangíveis da
liderança moral e de ideias.
É esse vácuo que Francisco passa a ocupar, principiando com aquilo que
os políticos evitam: a autocrítica rigorosa. A denúncia da "globalização
da indiferença", o convite para ir em socorro das periferias,
geográficas e existenciais, o exemplo dos gestos concretos, o conceito
de poder como serviço são mais que uma promessa. Um diamante começa a
brilhar em meio às cinzas.
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*Rubens Ricupero (São Paulo, 1 de março de 1937) é um jurista e diplomata brasileiro com proeminente atividade de economista. Diplomata de carreira de 1961 a 2004, exerceu, dentre outras, as funções de assessor internacional do presidente eleito Tancredo Neves (1984-1985), assessor especial do presidente José Sarney (1985-1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 05/08/2013
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