terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Edgar Morin - Entrevista

‘A Europa está sonâmbula’, diz Edgar Morin

É estimulante sentar-se na mesma mesa que Edgar Morin (foto), sociólogo francês, um dos intelectuais mais profundos e agudos do mundo. Tem 88 anos. Quando o vimos em sua casa de Paris, em meados de janeiro, rodeado de livros, de apontamentos, de objetos de escritório, de volumosos dossiês sobre todos os seus saberes e sobre grande parte de suas preocupações, estava a ponto de fazer uma viagem ao Brasil. Começamos falando dos contrastes que há entre o continente que vai visitar e esta velha Europa sobre a qual tanto refletiu.
Morin foi comunista, participou da resistência, é um intelectual que trabalhou tanto sobre o cinema como sobre as migrações; é um filósofo da vida cotidiana, um ativista cultural que trabalhou para a educação em todo o mundo. Alguns de seus livros são autobiográficos, como Vidal e os seus (Lisboa: Instituto Piaget, 1994), onde resgata a memória de seu pai, testemunho, como ele, de tempos convulsivos dos quais aprendeu “a rir, a chorar, a amar, a compreender”. Com o autor de A complexidade humana íamos falar de Europa e para que serve.

A entrevista é de Juan Cruz e está publicada no El País, 31-01-2010. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Vai ao Brasil. Como dizia Stefan Zwieg, “o país do futuro, e sempre o será”. E aqui estamos falando de Europa. Agora a América parece mais vital que a Europa. O que acontece com a Europa?
Sim, há um contraste entre a vitalidade de vários países da América Latina, e o que acontece na Europa. Ali há uma vitalidade para propor problemas, e inclusive para resolvê-los, ao passo que aqui tudo parece estar em letargia, como se a Europa sofresse uma esclerose. Eu esperava da Europa um renascimento, um renascimento intelectual, político e social. E o que temos é uma regressão que impede buscar o caminho do futuro.

E o que aconteceu?
Não devemos esquecer que desde a sua origem a ideia europeia, herdada da Segunda Guerra Mundial, era a de acabar com o suicídio europeu. Se fazia uma união para acabar com as guerras. E o núcleo dessa ideia eram a Alemanha e a França, os principais inimigos. E quando se pôs de manifesto a defesa da unidade, os próprios poderes resistiram. Os nacionalismos impediram a construção de uma espécie de confederação. Mas houve uma decolagem econômica e a Europa se assentou sobre uma base econômica...

Era positivo, ao fim e ao cabo...
Sim, mas comprometeu o desenvolvimento de uma comunidade político. Assim que quando nos últimos anos se chegou à conclusão de que havia que chegar a um acordo político, surgiram os obstáculos. Era muito difícil integrar os países que haviam sido da órbita soviética, cuja economia não estava no mesmo nível dos países que já eram membros. Isso impediu uma adesão sentimental forte desses países. Além disso, a segunda guerra do Iraque demonstrou que havia duas mentalidades: os franceses e os alemães pensavam que esta era uma guerra idiota, perversa, mas muitas democracias ex-soviéticas pensavam que os Estados Unidos eram o libertador da ditadura de Saddam Hussein; tinham uma visão positiva desta guerra, e nós tínhamos uma visão negativa.

E isto faz com que tenhamos dificuldades para fazer uma política comum.
Basta prestar atenção. Diante da questão de Israel e da Palestina, assim como sobre todas as questões mundiais, a impotência da Europa política e militar é absoluta. A guerra da Iugoslávia acabou com a intervenção dos Estados Unidos; a questão do Kosovo se resolveu mais ou menos bem com a intervenção norte-americana... Isso significa a impotência total da Europa política, e isto é um fracasso. Assim que aí temos a Europa: um sucesso econômico e um fracasso político.

Para o que contribui a desintegração da esquerda.
Havia uma cultura, uma cultura socialista, a cultura comunista, que em certo modo era a continuação da cultura da Revolução Francesa: igualdade, fraternidade, solidariedade... A laicidade social, a ideia republicana da educação. Havia na Europa, com esses partidos de esquerda, um povo de operários, de camponeses, de intelectuais, que se sentia de esquerda. Mas agora se desintegrou a cultura da esquerda. E isto é uma crise terrível porque põe de manifesto a falta de renovação de um pensamento capaz de diagnosticar os tempos atuais. Eu escrevi um livro, Política de civilização (Lisboa: Instituto Piaget, 1997), com o objetivo de oferecer dados para um novo conteúdo da esquerda, mas os partidos estão ocupados com outras coisas.

A que dá lugar a este fracasso da esquerda?
Esta crise permite o êxito de Berlusconi ou de Sarkozy... Mas há uma esquerda com vitalidade, essa é a que existe na Espanha... Zapatero me pareceu um homem muito valioso, mas temo que a crise faça o Partido Socialista pagar. Vamos ver o que acontece.

Você disse, em novembro, em Madri, que se sentia pessiotimista em relação ao que acontece no mundo. E Felipe González utilizou a sua expressão para referir-se à situação europeia... O que pesa mais em você, o pessimismo ou o otimismo?
A impressão que tenho é que, para buscar soluções para o que está acontecendo, encontro mentes mais dispostas na América Latina do que na Europa. Mas não sinto que isto reflita, da minha parte, um desespero. Na minha concepção da vida convivem o provável e o improvável. O improvável ocorreu na história, e é preciso esperá-lo. Até agora a Europa não produziu uma política comum com respeito aos problemas ecológicos da biosfera, mas existe a possibilidade de que o faça. Com relação aos países do Sul, a Europa se manifesta como muito egoísta. Mas podem estar ocorrendo sintomas invisíveis de mudança... Há cidades em que a sociedade civil trabalha para a renovação, como Viena, Friburgo ou Heidelberg... Há, na Europa, muitas coisas positivas, mas que não têm conexão entre si.

Você publicou no Le Monde e no El País uma espécie de manifesto, Metamorfose, em que cifrava as esperanças de mudança. Como deve se manifesta essa esperança na Europa?
Essa esperança se cifra em que a Europa acorde. Mas está mais sonâmbula do que acordada. Claro que pode ser eleito um presidente que tome a iniciativa; e, evidentemente, é preciso ter em conta que em Estrasburgo também se tomam decisões positivas. Eu não posso exagerar meu otimismo; fico com a ideia de que a situação não é positiva, mas não se pode eliminar as possibilidades boas.

Em 1987, sua ideia era que a Europa fosse a catalisadora de um conceito cujo único inimigo era a desunião. Mas agora prosperam os particularismos.
Sim, é evidente que há muitas regressões nacionalistas. Olhe o que acontece na Holanda, que era um país de tradicional tolerância. Aí se produziu uma reação nacionalista terrível! E observe o que acontece na França com os imigrantes indocumentados. Isso não acorreria no passado! Aqui houve uma tradição de hospitalidade, que não era puramente política, com os imigrantes. Agora não são considerados pessoas! Os fatores mais regressivos da Europa têm a ver com o fechamento étnico, nacionalista e religioso. Olhe a Suíça, com a proibição dos minaretes, como se fossem um perigo!

Assim o islamismo é apresentado.
E aqui há islamismo. Há um islamismo europeu. Há um islamismo na Alemanha, com os turcos; há um islamismo europeu muito antigo na Bósnia-Herzegovina e no Kosovo, e todos esses países que eram do antigo império russo... Na Espanha houve um islamismo durante oito séculos, e também na Europa, com a dominação turca... Assim que há um islamismo europeu. Que sentido, pois, tem não reconhecer a Turquia? Muito da resistência provém da ideia de que a Europa é algo como uma propriedade do cristianismo... A democracia não é cristã: vem dos gregos; a ciência não é cristã; a técnica não é cristã; a Europa moderna não é cristã. A ideia de laicidade se encontra em outras civilizações. Creio que a ideia de fazer da Europa como uma cidadela cristã é uma ideia equivocada.

E esta recusa a abrir-se a outros é sinal de debilidade?
Creio que esta dificuldade de integração vem, sobretudo, da perda de um sentido de segurança mundial que radicava no progresso como lei da história. Mas desde que caiu o Muro de Berlim e fracassou a União Soviética, essa lei tipicamente europeia se mundializou, veio a crise ocidental, se produziu uma gradação dos perigos, e o futuro se converte em incerteza. É o medo do futuro. E quando não há mais futuro que o presente, o presente se converte em um tempo de perigo. E se produz uma volta ao passado, às raízes da identidade religiosa, entre outras. E aí entra o medo dos negros, dos asiáticos, o velho medo quase racista de perder a pureza da identidade...

Você acredita que a alma da Europa está se amesquinhando?
A verdadeira alma da Europa é a problematização, a existência de uma mente crítica e autocrítica. Vem do Renascimento, de Montaigne... A alma da Europa é problematizar, interrogar: não ficar nunca adormecida. Toda a história do pensamento europeu é uma busca de verdade, uma pesquisa ininterrupta da verdade. E a alma da Europa se encontra, a partir do século XVIII, nas mulheres, na música e na poesia, porque o mundo varonil se concentra na guerra, na economia, na conquista do poder material. E o melhor da Europa está nas mulheres que, como aristocratas ou burguesas, têm seus salões e aí favorecem os poetas, os músicos. Penso que a alma da Europa se vê, a partir desse século XVIII, em poetas como Shelley, Novalis, Hölderlin, Rimbaud, entre os escritores e, entre os músicos, Beethoven, Mozart, Schuman... Essa é a alma da Europa.

Mas esse espírito está flutuando por aí...
Sim, evidentemente. Mas não esqueçamos que para revitalizar necessita-se de um pouco mais de feminilidade, de poesia, um pouco mais de arte. É preciso ter entusiasmo, razões para reiniciar uma esperança coletiva nos jovens, nas mulheres, nos homens... Há um monte de boas vontades, mas a boa vontade sem esperança fica desocupada. E essa desocupação da boa vontade produz desesperança diante da barbárie.

Você acredita que estamos em um momento de fracasso da ideia de Europa?
Estamos em um momento de fracasso da ambição política e cultural, mas diante de um certo sucesso econômico e das mentalidades. Porque antes havia um grande desprezo dos franceses em relação aos alemães, e vice-versa; e uma visão estereotipada dos franceses para com os italianos, do mesmo modo que havia uma visão dos espanhóis como gente que sempre andava tocando castanholas... Já não existe uma atitude belicosa ou agressiva entre os europeus; curiosamente, essa atitude belicosa se dá agora contra os magrebinos, africanos e outros... Mas entre europeus já é outra coisa. De forma que não é um fracasso total.

Ainda restam elementos de utopia.
Utopia... Antes da Segunda Guerra Mundial, a utopia era fazer uma Europa comum; para que se fizesse foi preciso enfrentar um perigo muito grande. Agora já se vê o que passou em Copenhague, na Cúpula do Clima: não se avançou talvez porque os políticos ainda não viram um perigo muito grande. Parece que, se não há riscos, não se reage...

Curioso que sejam os perigos que obrigam a buscar soluções...
É o que dizia o poeta Hölderlin: “Onde cresce o perigo, cresce também a salvação”.
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Postado IHU online, 02/02/2010

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