quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Paradoxos da eutanasia

André Gonçalves Fernandes*
A eutanásia inclui, por definição, a intervenção de um terceiro, cuja ação acabará em uma resultante juridicamente relevante ou não. Três questões emergem deste fato: a) se ele poderia levar a cabo sua ação de modo juridicamente lícito; b) se ele seria titular de um direito a requerê-la; c) caso o seja, se teria a obrigação jurídica de realizá-la.
A resposta vai depender do reconhecimento ao enfermo da possibilidade ou não de pôr termo à própria vida, como uma ação lícita juridicamente ou não. Há quem pense que, nesta matéria, temos direito a tudo o que não for proibido e, logo, muitas ações nos resultariam permitidas, sem necessidade de que o ordenamento jurídico nos atribua a devida ação para a tutela de um pleito de eutanásia.
Entender suficiente apenas o desejo subjetivo de morrer por parte de alguém para lhe conferir o direito à eutanásia e gerar, de imediato, um dever a um terceiro, exigiria partir de uma harmonia pré-estabelecida entre desejos próprios e alheios. Parece, ao contrário, preciso assumir juridicamente uma determinada teoria do justo que vá além da convicção de que, para ser titular de um direito, basta ele seja desejado com alguma veemência.
Quando se propõe a legalização da eutanásia, endossa-se, de modo mais ou menos consciente, um autêntico direito à morte, que poderia chegar a exigir a obrigatória colaboração de terceiros. Não é à toa que, nas propostas legais, entra em cena o chamamento à consciência, mas, desta vez, para admiti-la como causa de objeção frente a um dever jurídico.
Na questão da eutanásia, passamos da mera constatação de um lícito âmbito de atuação da liberdade individual ao reconhecimento de um suposto direito, o qual, inevitavelmente, acabaria se configurando como um direito-prestação garantido pelos poderes públicos. O debate deixou uma direção e seguiu o rumo da possível existência de um direito de que outro nos mate, já que somente partindo do dever de matar outrem tem sentido estabelecer exceções por via da objeção de consciência.
Esta alteração de perspectiva poderia permitir a chancela de um dissimulado “paternalismo mortis causa”, complicado pelo difícil desfecho, ante uma doença terminal, entre o consentimento do paciente e a percepção com que se vive sua enfermidade em seu entorno. Assim, dar por certo que o paciente não tem condições de suportar uma situação intolerável seria um notável exercício de compaixão.
O problema da validade do consentimento de um paciente terminal se une a este novo elemento, que impossibilita estabelecer com nitidez quem acabará, na prática, exercendo este suposto direito em jogo. Além da morte propriamente dita, a questão radical repousa na ausência de uma dimensão transcendente que, em última análise, impede a busca de sentido na convivência com a dor, a qual se transforma em fato gerador de indignidade.
Curioso notar que, na sociedade, florescem belas iniciativas estimuladas pela simpatia compassiva a respeito da tragédia de outros povos (como a dos países subsaarianos ou, mais recentemente, como a do Haiti), mas que soam paradoxais com uma postura favorável ao direito à morte.
Todavia, este debate ainda caminha pela mudança do conceito de vida: deixaria de ser meramente biológico e assumiria outros atributos, como o de uma vida digna ou uma vida de qualidade. Assim, privada destes atributos, desapareceria o objeto do direito à vida propriamente dito e, paradoxalmente, a legalização da eutanásia seria o símbolo de uma “nova” cultura da vida.
Quando a vida está atrelada à condição biológica, o elemento de referência é de segura fiabilidade. Certamente, não se chega à igual conclusão quando os elásticos conceitos de qualidade de vida ou dignidade de vida assumem tal lugar.
Com efeito, o debate da eutanásia resulta agudo no plano moral, já que as diversas concepções não biológicas de vida gerariam discrepâncias insolúveis, do que no plano jurídico, pois bastaria a garantia de um mínimo ético que evitasse a controvérsia e impedisse que, sob as aparências de comiseração, a dissimulação assumisse o lugar de outros impulsos inconfessados.
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*André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2 Vara Cível da Comarca de Sumaré
Fonte: Correio Popular online, 03/02/2010

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