JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Mídia tem excessos, mas é possível que os ganhos sejam maiores do que as perdas
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GOSTEI de ler a Ilustrada de domingo. O assunto era sério. Novelas. Brinco? Não brinco. Isso não significa que seja consumidor do gênero. Não sou. Nenhum motivo em especial. Tenho televisão em casa. Uso para ver meus filmes. Não uso para acompanhar a programação normal.
Mas os artigos da Ilustrada sobre o assunto são um desafio para qualquer alma conservadora. Segundo parece, as novelas de hoje entregam-se ao merchandising e aproveitam seus enredos para vender carros, celulares, hidratantes.
Os especialistas dizem que o impacto desta forma de "publicidade informal" é enorme: uma coisa é anunciar os produtos no bloco publicitário; outra, bem mais poderosa, é ter a celebridade a usar o creme, o celular ou o carro. Irresistível, é claro, desde que o personagem não seja mafioso ou traficante. Pode ser vilão, mas com "glamour".
Mas notáveis são os estudos acadêmicos sobre a influência social das novelas. Um deles, utilizando a linguagem "líquida" de Zygmunt Bauman, defende que as novelas oferecem relações amorosas "descartáveis", o que pode ter influência nociva na cabeça mole das crianças.
Ao mesmo tempo que as relações são "líquidas", as novelas mostram ainda personagens femininas emancipadas (e muitas vezes divorciadas) que as mulheres da "vida real" acabam por imitar em verdadeiro gesto de libertação.
Pergunta fatal: as novelas conduzem as sociedades para o abismo da imoralidade? Uma boa forma de responder à questão é ler Charles Kenny em edição recente da "Foreign Policy".
Não conhecia Charles Kenny. Mas, por mero acaso, uns meses atrás jantei em Lisboa com o seu pai, Anthony Kenny, um dos mais importantes filósofos vivos. Foi através dele que conheci o artigo do filho.
"Revolution in a Box", eis o título, permite dissipar fantasmas e confirmar algumas vitórias. Fato: a TV tem seus excessos, como qualquer produto de uma sociedade de massas. Excessos nocivos, entendam. Mas é possível que, no balanço final, os ganhos sejam maiores que as perdas, independentemente dos clichês alarmistas que intelectuais de esquerda ou de direita gostam de vender sobre o assunto.
Atualmente, existem 1,1 bilhão de aparelhos televisivos em todo o mundo; até 2013, mais 150 milhões acabarão por aparecer nas casas mais remotas do planeta.
E essa realidade esmagadora, longe de pôr em risco o tecido moral e epistemológico das sociedades, tem sido e pode continuar a ser uma alavanca econômica e até intelectual para os países mais pobres e para as suas populações mais carenciadas.
O Brasil é, obviamente, um caso: em 1970 e 1980, com a expansão da Rede Globo em todo o país, as famílias brasileiras não começaram apenas a batizar os seus filhos com os nomes dos personagens célebres que surgiam todas as noites na televisão.
Os personagens, sobretudo os femininos, assumiram-se como exemplos de independência e emancipação que tiveram influência direta e inspiradora para as brasileiras mais pobres. Contemplar uma vida melhor é, muitas vezes, o primeiro passo para procurar uma vida melhor. Contemplar comportamentos que promovem a liberdade individual e a independência econômica é, tantas vezes, o primeiro passo para procurar uma vida mais livre e mais independente.
Essas procuras implicaram uma taxa de fertilidade mais baixa e um maior número de divórcios? Sem dúvida. Mas ajudaram a quebrar ciclos de pobreza e resignação, um corte que teria sido impensável sem a educação "cívica" que só a televisão foi capaz de disseminar e promover.
Tal como na Índia, aliás: apoiando-se em estudos diversos sobre a influência da televisão nos países emergentes, Kenny defende como, em apenas dois anos de cobertura televisiva, as diferenças comportamentais entre as áreas rurais e urbanas tendem a diminuir de forma considerável.
Mas não apenas entre o campo e a cidade: mesmo no seio de populações juvenis e urbanas, o consumo regular de televisão tem efeitos diretos na diminuição do consumo de drogas e até nas taxas de gravidez adolescente.
Moral da história? Talvez seja mais politicamente correto vestir a toga do moralista para denunciar a vulgaridade e o filistinismo da televisão. O gesto, para além de ignaro, seria inútil. Quando as "elites" criticam a televisão, o principal receio delas não são as "más influências" das novelas. São, ironicamente, as boas influências. Porque as "elites" sabem que, se o povo continua a imitá-las, um dia será como elas.
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jpcoutinho@folha.com.br
*Escritor e colunista da FolhaFonte: Folha online, 02/02/2010
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