domingo, 7 de fevereiro de 2010

Razões por que a galinha bota ovo

Rubem Alves*


Perguntaram-me por que escrevo. A resposta é fácil. Escrevo pelas mesmas razões pelas quais a galinha bota o ovo. Ela não tem escolha. O ovo se impõe, força-se para fora, dói, a galinha arregala os olhos, balança as barbelas, assustada. Aí, de repente, o ovo escorrega e nasce para o mundo, para ser pintinho ou omelete. Aí é aquela felicidade! A galinha faz um enorme estardalhaço. O galinheiro inteiro fica sabendo. Pois quero fazer meu estardalhaço para anunciar uns ovos de letras que botei. Palavras são ovos, cheios de vida.

O primeiro é um livro para quem se diverte com a educação. Seu nome é A Pedagogia dos Caracóis (Verus Editora). Já está dito no nome: é um louvor à vagareza. Caracóis são vagarosos. Basho fez um lindo hai-kai sobre um caracol que subia o Monte Fuji. A imagem não é fantástica? Lá, muito longe, muito alto, gigantesco, eterno, coberto de neve, o Monte Fuji, indiferente, adormecido. É possível que acorde um dia com roncos, fogos, fumaça e morte. Aqui, na trilha coberta de folhas, tudo manso, um caracol que se move lentamente...

A menininha perguntou à sua mãe: “Mamãe, os professores dizem que é preciso andar rápido, cumprir o programa, nada de vagareza. Andar depressa para chegar na frente... Mamãe, o que é que existe de tão bom nessa ‘frente’?”.

O segundo, publicado pelas Edições Loyola, é um livro de estórias para grandes e pequenos: Sobre reis, ratos, urubus e pássaros. Brincadeiras misturadas com sabedoria. As ilustrações são obras de arte. Vale a pena parar e, lentamente, à moda dos caracóis, ir examinando os desenhos.

O terceiro vai para as livrarias dentro de algumas semanas. Mas já é hora de cacarejar... É no estilo do Ostra Feliz não Faz Pérolas, que ganhou um prêmio “Jabuti”.

A editora Planeta me pediu para escrever a “orelha” e a “quarta capa” do livro. Orelha e quarta capa são textos curtinhos em que se tenta explicar aos possíveis leitores o que está dentro do livro. Como se fossem canapés. Funcionam como “iscas” cujo objetivo é seduzir aqueles que dão uma “espiadinha”.

Começo o livro resumindo a minha vida.

“Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. Na segunda fase meu mundo encolheu, ficou mais modesto e passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as verdades e os absolutos, meu mundo se encolheu ainda mais e chegou não à sua verdade final mas à sua beleza final: ficou belo e efêmero como uma jabuticabeira florida.” Foi desse parágrafo que saiu o nome do livro: Do universo à jabuticaba.

Na quarta capa foi isso que escrevi:

“A vida se retrata no tempo formando um vitral de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol. Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos irreversíveis. Os cacos se perdem por aí. Às vezes eu encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos. Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira um velho amigo. Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco vermelho que muito me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencera.”

Disse que “escrevi”. Mentira. Copiei da Maria Antônia, poeta que escreve delicadezas. Escolhi esse poeminha dela para explicar esse livro que você tem nas mãos e que eu escrevi. Esse livro é uma coleção de cacos. Me perguntaram das razões por que não escrevo romances e novelas. A resposta é simples: porque sou incapaz de fazer vitrais, os cacos coloridos todos encaixados uns nos outros, formando um desenho. Olhando um vitral a gente não vê os cacos; vê o desenho. Acontece que o que me fascina não é o vitral. São os cacos, do jeito mesmo como a Maria Antônia descreveu. O que me intriga são os fragmentos que pedradas ao acaso tiraram do vitral. Os psicanalistas, por definição, são intérpretes de cacos. Um romance, uma novela – são as contas, amarradas umas nas outras formando um colar. O fio de nailon não deixa que as contas saiam dos seus lugares. Elas são obrigadas a dizer sempre as mesmas coisas. Mas eu não consigo amarrar as contas soltas que vou catando pelos caminhos da vida. Não conseguindo amarrar os cacos, só me resta guardá-los no bolso, sem ordem certa. A cada vez que tiro alguns cacos do bolso eles vêm numa ordem diferente e dizem coisas novas que não haviam dito.

Esse livro é um bolso cheio de cacos. Ler é brincar de tirá-los do bolso, um a um...

O que eu desejo: que, ao tirar os cacos desse bolso em forma de livro vocês encontrem risos e leveza e, se possível, espantos e beleza...
______________________________
• Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
FONTE: Correio Popular online, 07/02/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário