Para enxergar além dos fatos
Juliano Machado
HISTÓRIA
Uma criança vestida como um colono da época da independência, com seu rifle.
O direito a empunhar armas vem desde o século XVIII
Não há outro país no mundo com tantos civis armados como os Estados Unidos: são 90 milhões de pessoas munidas de quase 200 milhões de armas, segundo estimativas do governo. A grandeza desses números já permitiria dar uma ideia de como repercutiu entre os americanos a decisão da Suprema Corte de garantir a posse e o porte de armas a todos os cidadãos americanos, sob o argumento da legítima defesa. Por 5 votos a 4, os juízes da mais alta instância da Justiça dos EUA entenderam que esse princípio não pode ser restringido por Estados e municípios.
A posição da Corte foi um marco porque aparentemente pôs um fim à histórica discussão sobre a Segunda Emenda à Constituição americana, de 1791: “Sendo necessária para a segurança de um Estado livre uma milícia bem organizada, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido”. Aos olhos dos que defendem um controle mais rígido do governo sobre o armamento de civis, a emenda permitia aos Estados a criação de forças paramilitares para a segurança da população. Para os integrantes do poderoso lobby pró-armas, o texto deve ser interpretado sob a ótica de um direito individual. Foi o lado para o qual pendeu, em maioria, a ala conservadora da Corte.
A formação dos EUA como nação sempre esteve associada a uma arma em punho. Quando a Segunda Emenda foi aprovada, a ex-colônia britânica tinha apenas 15 anos de vida pós-independência, e ainda havia muita preocupação em relação à organização de milícias para defender as fronteiras de uma eventual invasão estrangeira. Ao longo do século XIX, a colonização rumo ao Oeste se deu em meio a conflitos com indígenas, geralmente abatidos à bala. Nas zonas rurais, era quase indispensável ter um rifle para obter comida pela caça e também para se defender do ataque de animais. Essas circunstâncias históricas forjaram o que o historiador Richard Hofstadter chamou, em 1970, de “cultura da arma”.
Há um consenso entre os americanos de que a Segunda Emenda foi inspirada na Carta de Direitos britânica de 1689, que permitia aos cidadãos protestantes o direito de possuir armas como autodefesa. O contexto era outro – pela via parlamentar, os protestantes buscaram se blindar de anteriores proibições do uso de armas por parte da monarquia inglesa, dominada por católicos –, mas havia a mesma ideia de que a população devia se armar para a segurança comum. No Reino Unido, esse princípio foi soterrado pela formação de corpos policiais profissionais (leia o quadro abaixo), mas a “cultura da arma” ainda tem seu peso na sociedade americana. Entidades pró-desarmamento alertam para o fato de que cerca de 10 mil americanos morrem anualmente vítimas de armas de fogo. Não acreditam no que disse há 219 anos um dos pais da pátria americana, James Madison, sobre a emenda das armas: “Americanos têm o direito e a vantagem de se armar, ao contrário de países cujos governos não confiam em sua população armada”.
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Fonte: Revista Época online, 03/07/2010
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