quinta-feira, 8 de julho de 2010

Experimento lança dúvida sobre uma das teorias fundamentais da física


Resultado de medição do próton parece ser incompatível com a eletrodinâmica quântica


A teoria desenvolvida pela ciência no século 20 para explicar todos os fenômenos elétricos, magnéticos e a forma como a luz interage com a matéria está sendo desafiada por um importante resultado experimental. Considerada pelo ganhador do Nobel Richard Feynman a "joia da física - nosso maior orgulho", a eletrodinâmica quântica, ou QED, pode acabar se revelando um diamante imperfeito.

Divulgação/Nature
Capa da revista Nature desta semana, com a descoberta da medida do próton


Não é pouca coisa: a QED é uma das teorias mais bem-sucedidas de todos os tempos. No livro que escreveu sobre o assunto, QED, A Estranha Teoria da Luz e da Matéria, Feynman (que morreu em 1988), compara a exatidão dos resultados produzidos com base nela à de uma medida da distância entre as cidades de Los Angeles e Nova York - de mais de 3.900 km - que fosse correta até a espessura de um fio de cabelo.

O experimento que está pondo a precisão da QED em jogo sonda espaços muito menores que o da largura de um cabelo humano, no entanto. Descrito na edição desta semana da revista Nature, ele representa a medição mais perfeita já obtida do raio do próton, uma das partículas fundamentais da matéria, presente no núcleo de todos os átomos. Se a espessura de um fio de cabelo se mede em micrômetros, ou milionésimos de metro, o raio de próton é apenas uma fração de femtômetro. É preciso um trilhão de femtômetros para fazer um milímetro.

O raio do próton apresentado na Nature é da ordem de 0,84 femtômetro. Experimentos mais antigos, no entanto, haviam fixado um valor mais próximo de 0,87. A diferença, embora pareça pequena, fica além das margens de erro estatístico e pode representar a primeira rachadura na couraça da QED, teoria que serviu de base para os cálculos realizados tanto na medição atual quanto nas anteriores.

Erro, revolução e cautela

Entre os cientistas, a discrepância, com sua sugestão implícita de uma falha na estrutura da QED, ao mesmo tempo entusiasma, intriga e inspira cautela. "Um problema na física da QED é a explicação menos provável, mas de longe a mais interessante e a principal motivação para trabalhos assim", resume o físico Jeff Flowers, do Laboratório Nacional de Física do Reino Unido e autor de um comentário que acompanha o artigo na Nature.


Flowers considera como mais prováveis causas para a diferença um erro de cálculo ou de experimento, cometido na medição atual ou em trabalhos prévios. Mas faz uma ressalva: "Por causa da discrepância entre o resultado deste artigo e os trabalhos anteriores, o artigo foi revisado, tanto formal quanto informalmente, por especialistas em física teórica e experimental, e ninguém conseguiu apontar um erro. Claro, isso não prova que não haja erro, mas ele com certeza não é óbvio".

Parte do aparato laser usado para medir o tamanho do próton. F. Reiser/PSI/Divulgação

O principal autor do artigo com o novo raio do próton, Randolf Pohl, do Instituto Max Planck de Óptica Quântica, na Alemanha, também diz que não está convencido de que a QED tenha falhado. "Mas estamos muito intrigados", reconhece. "Os experimentos são todos muito precisos e redundantes, então é difícil ver como poderiam ter errado tanto. E os teóricos acreditam que seus cálculos estão corretos".

"Minha opinião pessoal", diz ele, "é que temos muito trabalho pela frente", envolvendo novos experimentos e revisão dos cálculos. "Só se ninguém encontrar um erro é que poderemos presumir que a QED está em apuros".

Novas teorias e tecnologias

Mas o que significaria a QED estar em apuros? O fato de equipamentos eletrônicos funcionarem é uma prova de que ela não pode estar muito errada. Pohl concorda: "Sim, se a QED estiver errada, seria um efeito muito sutil, que não afetaria o funcionamento interno de televisores ou computadores".

Flowers, por sua vez, lembra que há casos na história da ciência em que o que parecia ser apenas uma pequena correção teórica, num determinado momento, acabou se revelando uma revolução filosófica e técnica mais à frente.

"A Relatividade Geral poderia ter sido apenas uma pequena perturbação da gravidade newtoniana", exemplifica, referindo-se à interpretação de Albert Einstein para os efeitos gravitacionais, que difere da teoria clássica de Isaac Newton. "No entanto, essa pequena perturbação acabou se revelando muito significativa". Não só filosoficamente a relatividade é "uma mudança radical de pensamento", diz ele, como na prática a teoria de Einstein se mostrou necessária para aplicações tecnológicas de alta precisão, como o sistema GPS.

"Como na gravidade newtoniana, uma falha da QED terá, de imediato, implicações para a física e para o nosso modelo do mundo e, no futuro, possivelmente em aplicações de alta precisão e tecnologias que ainda não conhecemos", especula.

Uma "física além da QED", capaz de explicar o resultado experimental, poderia incluir uma nova partícula subatômica, ainda desconhecida e não prevista nas teorias atuais. "Trata-se de possibilidade altamente especulativa e que só tem sido discutida em 'coffee-breaks' por enquanto", adverte Pohl.

"Podemos olhar novamente para a história, onde tem havido um ciclo de teorias sendo derrubadas por experimentos e levando a novas teorias", diz Flowers. "Esperamos continuar a refinar nossa compreensão e nossa capacidade de manipular o mundo físico".

O experimento

A medição do raio do próton foi feita por uma equipe de cientistas europeus liderada por Randolf Pohl e realizada no Instituto Paul-Sherrer, na Suíça. Os pesquisadores obtiveram sucesso na tentativa de substituir o elétron de um átomo de hidrogênio por uma partícula com a mesma carga elétrica, mas mais pesada, o múon.

O hidrogênio é o átomo mais simples que existe, composto apenas por um próton no núcleo e um elétron em órbita. Sendo mais pesado, o múon descreve uma órbita em torno do núcleo muito mais estreita que a do elétron e, por isso, sofre perturbações intensas, provocadas pela proximidade do próton.

Medindo essas perturbações com o uso de raios laser, os cientistas deduziram o raio do próton com uma precisão dez vezes maior que a permitida por outros experimentos. A ideia de usar "hidrogênio de múons" para medir o próton existia há décadas, mas desafios tecnológicos só permitiram que a experiência fosse tentada há poucos anos. O sucesso, afinal, veio em 2009.

"Até onde sabemos, os elétrons são partículas pontuais. Os prótons, não", explica Pohl. "São feitos de três quarks, muitos pares virtuais quark-antiquark e muitos glúons. Se você pensar no próton como uma nuvem difusa de quarks e glúons, essa nuvem ocupa algum espaço". A medição realizada permite obter um valor que pode ser interpretado como o raio médio da nuvem.

O fato de o próton ser menor do que se imaginava não significa, no entanto, que o conteúdo de espaço vazio embutido em matéria feita de átomos - planetas, árvores, pessoas - seja muito maior.

"O que conta não é o tamanho das partículas constituintes, mas o alcance da interação eletromagnética", diz Pohl. "Nesse aspecto, os átomos continuam a ser do mesmo tamanho. Além disso, o vazio não é de todo vazio. De acordo com a QED, o vácuo no interior dos átomos e dos prótons está repleto de fótons e partículas virtuais. Mas essa é outra história".

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Reportagem: Carlos Orsi, do estadao.com.br Fonte: Estadão online, 07/07/2010

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