sexta-feira, 16 de julho de 2010

O amor em tempos de fratura

Ismail Kadaré investiga relacionamento sinistro nos Bálcãs.


Kadaré:
questão política, predominante nas suas outras obras, permeia história de amor

"Todos tinham medo naquela história. Com ou sem motivo. Um do outro, de si próprio, de não se sabe quem." Ismail Kadaré faz essa observação a respeito de sua primeira história de amor, "O Acidente", romance mais recente de uma carreira iniciada em 1963. Aos 74 anos, Kadaré é um dos escritores mais prestigiados do mundo, sempre cogitado para o Prêmio Nobel. Até aqui sua obra havia tratado fundamentalmente do poder, e este livro, por mais diferente que seja, não deixa de também falar do assunto.

O ponto de partida é um acidente de carro numa estrada. Um táxi de repente sai da pista e cai pelo barranco lateral. O casal de passageiros, ambos albaneses, é arremessado para fora e morre. O motorista sobrevive. As vítimas, Bessfort Y. e Rovena St., ele mais velho, ela muito bela, eram, respectivamente, analista do Conselho da Europa sobre questões dos Bálcãs e estagiária do Instituto Arqueológico de Viena.

Por atuarem internacionalmente e porque Bessfort teve um papel discreto, mas importante, na aprovação dos bombardeios à Sérvia no auge da crise de Kosovo, nos anos 90, o acidente levanta suspeitas nos serviços secretos da Iugoslávia e da Albânia.

As primeiras investigações apenas aumentam o mistério. O motorista declara que perdeu o controle da direção quando viu, pelo retrovisor, que o casal "tentava se beijar", mas não consegue dizer mais nada. Surge uma testemunha inesperada, a pianista suíça Liza Blumberg, amante de Rovena, que defende a estranha tese de que Bessfort assassinara a namorada e que não era ela quem estava no táxi.

A reconstituição da relação entre Bessfort e Rovena pelo investigador toma a parte central do romance e se confunde com a voz do narrador, que por sua vez incorpora a dos personagens, sobretudo a de Rovena. É um caso de amor conturbado. Rovena sente-se tratada como uma prostituta escravizada por um algoz "a quem a ruína de um Estado europeu oferecia aparentemente o mesmo deleite que o domínio, ou melhor, a submissão da mulher".

Os paralelos e metáforas políticas se multiplicam. O romance do casal brota da atmosfera de libertação resultante da queda do comunismo na Albânia e ganha contornos sinistros conforme a região tem que se haver com as fraturas sangrentas que eclodem para todo lado. A paranoia invade a cena enquanto o casal se move por uma nova Europa sem fronteiras, mas vigilante. Sonhos de que é convocado ao tribunal de Haia perseguem Bessfort.

Outras perguntas saturam a reconstituição das últimas semanas do casal. O amor é narrável? Pode ser compatível com a verdade? É uma invenção? Os personagens surgem obcecados pela "célebre dúvida sobre o amor, se ele existia realmente ou se era apenas um estado doentio, uma nova alucinação, manifestada nesse planeta há apenas 5 ou 6 mil anos, tentando saber se o globo terrestre o assimilaria ou o rejeitaria como ocorre com um corpo estranho".

O texto de Kadaré se assemelha à arquitetura de vidro que chama a sua atenção nos novos edifícios do Leste Europeu. Muita sobreposição, muito reflexo e brilho demais. Se a história chega a algum termo, é a conclusão do investigador de que os amantes mortos haviam "abandonado a ordem das coisas". "Ele sabia que, como ensinara Platão, aquela crônica não passaria de um pálido reflexo do modelo eterno." É de supor que o retrovisor tenha refletido a luz de fora da caverna.

"O Acidente"

Ismail Kadaré.
Trad.: Bernardo Joffily Companhia das Letras
- 232 págs., R$ 47,00 / BBB
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Por Márcio Ferrari, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 16/07/2010

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