sexta-feira, 16 de julho de 2010

"Fazes-me Falta"

Inês Pedrosa, melancólica e intrigante

 
Inês Pedrosa

Por causa da boa aceitação de "Fica Comigo Esta Noite" (2008), da escritora e jornalista portuguesa Inês Pedrosa, a editora Alfaguara relança este "Fazes-me Falta" (2003), o livro que a consagrou. É talvez um dos mais intrigantes romances portugueses desta década, uma narrativa em duas vozes, no qual um casal reflete sobre a relação amorosa interrompida pela morte prematura da mulher, aos 37 anos.

Feminista de primeira hora, Inês é conhecida por seu engajamento em causas como a união entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização do aborto. Se a militância na vida real é explícita, na obra ela surge de forma muito mais discreta.

A personagem feminina de "Fazes-me Falta" é uma professora que se envolve na política de forma idealista. Ela não carrega bandeiras nem faz discursos, mas é possível perceber, de forma sutil, muitas vezes nas entrelinhas, críticas ao machismo da sociedade, às diferenças sociais e outras questões atuais.

A autora criou uma estrutura na qual cada capítulo, que dura em geral duas ou três páginas, traz o pensamento de um deles, de forma alternada. O estilo de escrever de cada personagem é bem diferente do outro, o que torna desnecessária a alteração do tipo de letras usado em cada texto. No fundo, é como se cada capítulo fosse uma carta que um escreve ao outro. A questão é que nenhum dos dois tem conhecimento do que o outro escreveu. Isso é ainda mais interessante quando percebemos que volta e meia os textos se cruzam de forma a dialogar indiretamente entre si.

É um livro em que a forma é tão importante quanto o conteúdo. A mulher narra depois da morte, sendo uma espécie de versão feminina (e melancólica) do "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Ao longo dos textos, ela vai refletindo sobre a vida e principalmente sobre seu grande amor, um homem 25 anos mais velho. Já ele, por seu turno, lamenta a perda da amada num tom de inconformismo. Por ser bem mais velho, tinha como certo que iria morrer antes dela. A perda súbita o faz ter consciência de tudo o que teria deixado por dizer e fazer. A referência, nos capítulos masculinos, parece ser o Proust de "Em Busca do Tempo Perdido".

Por exemplo, a certa altura a mulher lamenta que a política a tenha afastado dele. No capítulo seguinte, ele reclama da falta de companheirismo dela, afirmando que políticos não precisam de amigos, mas sim de uma corte de seguidores. Ou quando ele relata que por vezes tem a momentânea ilusão de vê-la sentada na poltrona do fundo da sala, e ela conta, no capítulo seguinte, que costuma sentar-se nessa poltrona a observá-lo, mesmo sabendo que ele não a vê mais.

A mulher é onipresente. Percebe os anos que passam e assiste ao início de uma nova relação do marido. É como um fantasma a vagar ao redor da velha vida, inconformada com a morte.

Não se trata de leitura fácil. Inicialmente, as constantes mudanças de foco narrativo são obstáculos à fluidez do enredo, mas à medida que a leitura avança, somos envolvidos pelo amor dos dois e pelo cotidiano da época. É um estudo sobre a solidão e a morte, que tem como pano de fundo o pós-salazarismo, as guerras nas colônias de Portugal dos anos 70, questões femininas, sociais etc. Um livro melancólico e instigante.

Inês Pedrosa
- Alfaguara
- 272 págs.,
R$ 37,90 / BBB

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Por Marcelo Lyra, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 16/07/2010

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