sexta-feira, 16 de julho de 2010

O cérebro sem mistérios

Capa: Antecipação do diagnóstico do mal de Alzheimer
pode ajudar a desfazer equívocos sobre
a ocorrência de problemas de memória.




Os livros e a internet servem justamente para suprir a necessidade
de recuperar informações perdidas,
aquelas que o cérebro descarta ou
coloca em segundo plano

O mal de Alzheimer poderá ser diagnosticado ainda antes que apareçam problemas evidentes de memória, entre outros sinais de demência, graças ao uso de tecnologias de escaneamento cerebral. Foi essa a grande novidade apresentada terça-feira num encontro médico internacional sobre Alzheimer realizado no Havaí. Com esse avanço, o mais importante em muitos anos, muito mais pessoas estarão sujeitas à identificação como portadoras da doença, mas também se abrem novas possibilidades para a produção de medicamentos que barrem sua progressão.

O estabelecimento de novas formas de diagnóstico, dissociadas da simples constatação de desenvolvimento da doença por detecção de sinais de demência, poderá ajudar a desfazer equívocos, entre leigos, a respeito da fisiologia da memória.


Daniel Ciamp, neurologista:
O mal de Alzheimer só atinge pessoas com mais de 65 anos.
O grande problema nos jovens é a falta de atenção e concentração,
não a perda de memória


Não é raro que adultos jovens se queixem de problemas, nessa área, e muitos se dizem apavorados por um imaginário mal de Alzheimer precoce. Mas quando se entende como as memórias se formam e se consolidam, fica claro que esquecer não só é normal, é fundamental.

Responda depressa: qual foi o primeiro adversário do Brasil na Copa do Mundo da África do Sul? Por mais fanático por futebol que você seja, daqueles que tiram férias em tempos de Copa para ver todos os jogos, é provável que demore um pouco para lembrar que foi a Coreia do Norte. Dentro de algumas semanas, é possível que esse jogo seja deletado da sua memória, dando lugar a novas lembranças. Esquecer é preciso. No conto "Funes, o Memorioso", o escritor Jorge Luis Borges retratou um sujeito que nada esquecia: para se lembrar minuto a minuto de um dia de sua vida, precisava de um dia inteiro.


Jorge Luis Borges (foto) aprendeu a falar escandinavo antigo depois dos 50 anos
e Giuseppe Verdi reaprendeu música depois dos 70:
a motivação estimula o uso da memória em qualquer idade

A maioria das coisas que aprendemos ao longo da vida é esquecida. Se não fosse assim, a lembrança da morte de alguém querido traria sempre de volta o impacto imenso da dor daquele momento.

Memória - os especialistas preferem memórias, no plural - são extremamente dinâmicas e pessoais. Uma de suas características é, muitas vezes, estarem associadas a uma emoção intensa. A outra é que funcionam sempre em seu nível máximo. Para dar espaço a novos conhecimentos, novas informações, o que o cérebro considera irrelevante, desimportante ou desnecessário é apagado ou sequer registrado. Assim, muita gente que se queixa de falta de memória sofre, na verdade, de falta de atenção.

"Memória é a aquisição, formação, conservação e evocação de informações. Só lembramos daquilo que gravamos", ensina o médico Ivan Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro, professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que vive há 37 anos em Porto Alegre.

A memória não é privilégio dos seres humanos. Até amebas e drosófilas - aquelas mosquinhas das frutas - têm memória. Tanto que algumas das mais importantes pesquisas da área, que valeram o Nobel de Medicina e Fisiologia de 2000 ao pesquisador Eric Kandel, foram feitas em aplísias, uma espécie de lesma. "Os mecanismos moleculares da memória são os mesmos nas várias espécies. O que faz a nossa diferente é o uso da linguagem para adquirir, gravar ou evocar memórias. É um recurso que começamos a usar por volta dos 2 ou 3 anos de idade", explica Izquierdo.

Neurônios, as células nervosas, são responsáveis pelo armazenamento e evocação das memórias. Têm prolongamentos ramificados, chamados axônios, que transmitem informações sob a forma de impulsos elétricos para os dendritos, as regiões receptoras das células nervosas. Os agentes encarregados dessa transmissão são substâncias químicas chamadas neurotransmissores, sintetizadas nas extremidades dos axônios. Muitos desses neurotransmissores são bem conhecidos até do público leigo. É o caso da serotonina - cuja falta está associada à depressão - dopamina, noradrenalina, acetilcolina, entre outros.

Os pontos em que as terminações do axônio se aproximam dos dendritos de outras células nervosas são chamados sinapses, nas quais ocorre a intercomunicação entre as células. Cada aprendizado, cada nova experiência cria essas ligações entre as células nervosas. Um único neurônio pode estabelecer conexões com outros 10 mil ou 100 mil neurônios. Temos cerca de 100 bilhões de neurônios. Faça as contas. Como cada um de nós passa por experiências e emoções diferentes ao longo da vida, essa arquitetura cerebral varia de pessoa para pessoa, ao longo do tempo.

Os especialistas falam em memórias, porque as classificam de acordo com a duração e seu conteúdo. Há, por exemplo, a chamada memória de trabalho, que dura míseros segundos ou, no máximo, alguns minutos. "Ela não deixa traços, nem forma arquivos. É essa memória que, por exemplo, retém em nossa consciência a terceira palavra da frase anterior, - que, aliás, já esquecemos -, para que esse texto faça sentido, ou para que uma conversa tenha fluência, ou para digitar um número de telefone", explica Izquierdo.

Todos nossos primos primatas têm boa memória de trabalho, que parece depender basicamente da atividade elétrica dos neurônios do córtex pré-frontal e envolve poucas alterações bioquímicas. É ela que gerencia nosso contato com a realidade, decide o que vamos ou não preservar, compara determinada situação com outras já vividas, decide se aquele momento oferece perigo ou não. É ela que nos faz olhar para os dois lados de uma rua antes de atravessá-la na faixa de pedestres.

As memórias que registram fatos, eventos ou conhecimentos são chamadas memórias declarativas, porque podemos explicar como foram adquiridas. "Sabemos onde estávamos quando soubemos ou vimos o acidente que matou Ayrton Senna, como soubemos do atentado às torres do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001, como aprendemos a falar inglês, a construir prédios, tratar pacientes ou fazer uma entrevista", diz Izquierdo. São memórias muito mais suscetíveis à modulação das emoções, do estado de ânimo, ou pela ansiedade. Não é isso que ocorre com as chamadas memórias procedurais, aquelas associadas a hábitos, como andar de bicicleta, nadar, soletrar ou falar o idioma materno. É praticamente impossível descrever o passo a passo de cada um desses procedimentos.

Essas memórias de longa duração podem ser preservadas por dias (saber que temos uma reunião importante na próxima quarta-feira) ou meses ( durante aquele ano de cursinho pré-vestibular você sabia na ponta da língua o que eram logaritmos, ribossomos, mitocôndrias e capacitância) ou anos, ou a vida inteira.

Memórias de longa duração levam tempo para se consolidar e, nas primeiras horas após sua aquisição, podem se alterar, por uma série de fatores. Não adquirem imediatamente forma estável e permanente. Precisam ser reforçadas, reacessadas, para se consolidar. "Se não fosse assim, não precisaríamos estudar a mesma matéria várias vezes, até aprender", diz Izquierdo. Na definição dos especialistas, memórias de curta duração duram poucas horas, tempo necessário para que as de longa duração se consolidem. Sabe-se hoje que elas envolvem processos paralelos e independentes.

Como a formação da memória é mediada por neurotransmissores, fica fácil entender por que, depois de uma noite mal dormida, num dia de ressaca brava ou num momento de tristeza profunda, nem nossa memória de trabalho funciona bem. "A gente não consegue entender direito o que lê ou ouve, não se lembra do número de telefone que acabou de ver para discar", exemplifica Izquierdo.

De acordo com o neurologista Daniel Ciamp, do Hospital Sírio-Libanês, pessoas saudáveis e jovens dificilmente têm problemas de perda de memória. "É bom lembrar que o mal de Alzheimer, que assusta muita gente, só atinge pessoas com mais de 65 anos. Pequenos esquecimentos, como não lembrar onde está uma chave, confundir o horário de uma ida ao dentista, são perfeitamente normais. Só se deve procurar um médico quando esses esquecimentos começam a ter impacto na vida da pessoa, quando se esquece uma criança num carro ou um encontro importante."

Segundo Ciamp, o grande problema nos jovens é a falta de atenção e concentração. O primeiro passo, nesses casos, é verificar se não existe uma causa orgânica para o problema. "Todos os pacientes de depressão, sem exceção, se queixam de problemas de memória. Esquecimentos são comuns em idosos, não apenas por causa da idade, mas por que muitos sofrem de depressão." Disfunções da tireóide, hiper ou hipotireoidismo também podem causar problemas, assim como a falta de vitamina B12 e quadros de ansiedade.

Izquierdo faz uma lista dos grandes inimigos da memória e coloca o consumo de álcool no topo da lista. "Além do álcool, temos a cocaína, a morfina, os antidepressivos e todos os medicamentos para dormir. Imagine o sujeito que, sob pressão no trabalho, resolve ir ao happy hour todo dia para relaxar e, de quebra, toma remédios para dormir. Vai prejudicar a memória e ter mais problemas."

Tanto Izquierdo como Ciamp detectam uma verdadeira epidemia de pessoas jovens que circulam por consultórios médicos em busca de receitas de remédios usados no tratamento de déficit de atenção. "É um perigo. Muita gente anda tomando essas drogas como se fossem anabolizantes. Vão a um médico pedindo receita, depois a outro, até encontrar um profissional que prescreva. Dizem que precisam estudar para concurso público, para vestibular, que estão tendo problemas no trabalho e acham que esses medicamentos vão aumentar sua memória, como se fossem um 'pen drive mágico'", conta Ciamp.

Izquierdo explica que a memória funciona em sua capacidade máxima o tempo todo. "Uma pessoa com depressão, uma pessoa num momento de extrema tristeza, tem uma capacidade de memória menor, mas ela é o máximo disponível naquele momento. Esses remédios funcionam apenas para as pessoas que têm problemas reais de memória. Nas demais, servem apenas para perder o sono." Segundo Ciamp, como todo remédio, esses também envolvem riscos. Como aumentam a síntese de serotonina e noradrenalina, têm impacto sobre o sistema cardiovascular e podem causar infartos e derrames.

O cérebro, como a musculatura, precisa de exercício, e não existe academia melhor para os neurônios do que a leitura. "Ler é fundamental", observa Izquierdo. "Quando você está diante da palavra MEMÓRIA, por exemplo, numa questão de milissegundos seu cérebro revira arquivos em busca de todas as palavras que você conhece começadas por M. Em seguida, ele vai atrás de todas as iniciadas por ME. Depois, as que começam por MEM, e assim por diante. A cada vez que o cérebro faz isso, essas memórias se exercitam e reforçam. Nenhuma outra atividade estimula tanto a memória quanto a leitura."

Outra arma da memória é a motivação, ter em mente a necessidade de preservar aquela informação. "Isso independe da idade. Jorge Luis Borges aprendeu a falar escandinavo antigo depois dos 50 anos. Giuseppe Verdi reaprendeu música depois dos 70 anos, tanto que suas últimas óperas, como 'Otello', têm estrutura diferente das anteriores. Tenho mais de 70 anos. Se não aprender coisas novas, não vou ter mais espaço para trabalhar", diz Izquierdo.

Os dois especialistas lembram que manter a atenção no que se faz é essencial para a memória. O cérebro, afirmam, consegue executar bem, no máximo, duas tarefas ao mesmo tempo. Daí o perigo da combinação de dirigir, prestar atenção no trânsito e falar ao celular ao mesmo tempo. "As pessoas são bombardeadas por um número imenso de informações via celular, internet, blackberry, e têm essa ilusão de que podem absorver tudo. Mas, sem atenção, não há como reter e gravar informação", avisa. No entanto, há esperança, na própria plasticidade do cérebro.

Santiago Ramon y Cajal, o primeiro a postular que modificações nas sinapses eram a base da memória, em 1893, costumava se queixar do acúmulo de ruído e informação trazidos pelo rádio. O Nobel de Medicina de 1906 acreditava que as pessoas ficariam assoberbadas e aflitas com o barulho somado de diferentes aparelhos. "No entanto, sobrevivemos ao rádio, ao telefone, ao cinema, à televisão e nosso cérebro certamente vai aprender a lidar bem com informações vindas do celular, da internet, dos blackberries e o que vier por aí", prevê Izquierdo.
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Por Ruth Helena Bellinghini, para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econôminco online, 16/07/2010

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