terça-feira, 13 de julho de 2010

O fantasma da confiança do mercado

Usá-lo para conduzir a economia é uma completa perda de tempo.



 
Dani Rodrik*

Mesmo em retrospecto, algumas vezes não fica claro
porque os mercados se movem numa direção e não em outra



Um espectro assombra a Europa - o espectro da "confiança do mercado".
Pode ter sido o medo do comunismo o que agitou governos quando Karl Marx escreveu as linhas de abertura do seu famoso manifesto em 1848, mas hoje é o pavor de que o sentimento do mercado se volte contra eles e eleve os spreads sobre os bônus dos seus governos. Dirigentes em todas as partes estão sendo obrigados a adotar uma política de retração fiscal prematura, ainda que a taxa de desemprego continue elevada e a demanda privada demonstre poucos sinais de vida. Muitos são levados a adotar reformas estruturais nas quais não acreditam realmente - só porque não fazê-lo passaria uma má impressão aos mercados.

O terror movido a sentimento de mercado já foi a ruína exclusiva dos países pobres. Durante a crise da dívida latino-americana da década de 1980 ou a crise financeira asiática de 1997, por exemplo, os países em desenvolvimento pesadamente endividados acreditaram não ter muitas opções além de engolir um remédio amargo - ou enfrentar uma avalanche de saídas de capital. Agora é a vez de Espanha, França, Reino Unido e, avaliam muitos analistas, até dos Estados Unidos.

Se queremos tomar dinheiro emprestado, precisamos convencer a nossa instituição de crédito de que podemos devolver os recursos. Até aí está claro. Em tempos de crise, porém, a confiança do mercado assume vida própria. Ela se torna um conceito sublime desprovido de qualquer conteúdo econômico real. Ele se transforma naquilo que filósofos chamam "construção social" - algo que só é real porque assim acreditamos. Isso porque, se a lógica econômica fosse bem definida, os governos não precisariam justificar o que fazem com base na confiança do mercado. Ficaria evidente qual política funciona ou não, e a busca das políticas "certas" seria a forma mais segura de restaurar a confiança. A perseguição da confiança do mercado seria supérflua.

Assim sendo, se a confiança de mercado tem um significado, deve ser algo que não é determinado simplesmente pelos fundamentos econômicos. Mas o que seria isso?

No seu Manifesto Comunista, Marx afirmou que "chegou a hora de os comunistas poderem publicar, abertamente, diante de todo o mundo, suas opiniões, seus objetivos e tendências e confrontar esse conto do espectro do comunismo com um manifesto do próprio partido". Igualmente, seria interessante se os mercados esclarecessem o que eles querem dizer com "confiança", de forma a que saibamos todos com o que estamos lidando.

Certamente, é improvável que os "mercados" façam algo desse naipe. Isso não só porque os mercados são constituídos por uma profusão de investidores e especuladores que muito provavelmente jamais se reunirão para publicar um "programa do partido", mas, mais fundamentalmente, porque os próprios mercados têm pouca noção do que seja.

A capacidade e a disposição de um governo de servir a sua dívida dependem de um número quase infinito de contingências atuais e futuras. Elas dependem não só dos seus planos fiscais e de gastos, mas também do estado da economia, da conjuntura externa e do contexto político. Todas são extremamente incertas e exigem muitas premissas para chegar a algum tipo de critério sobre capacidade creditícia.

Hoje, os mercados parecem pensar que vastos déficits fiscais são a maior ameaça à solvência de um governo. Amanhã eles poderão pensar que o problema real é baixa taxa de crescimento e deplorarão as severas políticas fiscais que ajudaram a produzi-la.

Atualmente, eles se preocupam com governos brandos, incapazes de tomar as duras medidas necessárias para lidar com a crise. Talvez amanhã eles percam horas de sono com as manifestações em massa e os conflitos sociais provocados pelas duras políticas econômicas.

Poucos sabem prever em qual direção o sentimento de mercado se moverá, quanto mais os próprios participantes do mercado. Mesmo em retrospecto, algumas vezes não fica claro porque os mercados se movem numa direção e não em outra. Políticas semelhantes produzirão reações de mercado distintas, dependendo do conto predominante ou da coqueluche do momento. Isso explica por que conduzir a economia com base nos ditames da confiança de mercado é uma perda de tempo.

O raio de esperança em tudo isso é que, ao contrário dos economistas e políticos, mercados não têm ideologia. Enquanto ganharem dinheiro, não se importarão se tiverem de engolir as suas próprias palavras. Eles simplesmente querem o que quer que "funcione" - o que quer que produza um ambiente econômico vigoroso propício ao pagamento da dívida. Quando as circunstâncias se tornarem horríveis demais, eles até tolerarão a reestruturação da dívida - se a alternativa for caos e a perspectiva de prejuízo maior.

Isso abre algum espaço para os governos manobrarem. Permite que políticos seguros de si assumam o controle do seu próprio futuro. Isso os autoriza a moldar a história que dá sustentação à confiança de mercado, em vez de ficar brincando de pega-pega.

Mas para fazer bom uso desse espaço de manobra, os formuladores de política precisam articular um relato coerente, sólido e confiável do que estão fazendo, baseado tanto nos princípios econômicos como nas boas práticas políticas. Eles devem dizer: "Estamos fazendo isso não porque os mercados exigem isso, mas porque é bom para nós e pronto".

O argumento deles precisa convencer os seus eleitorados, assim como os mercados. Se lograrem êxito, poderão ir atrás dos seus próprios princípios e manter a confiança dos mercados ao mesmo tempo.

Foi nesse ponto que os europeus (junto com os seus assessores econômicos) dormiram no ponto. Em vez de enfrentarem o desafio, os líderes primeiro empurraram com a barriga e depois se renderam à pressão. Eles acabaram cultuando os pronunciamentos dos analistas de mercado. Ao fazê-lo, negaram a si mesmos políticas economicamente desejáveis que têm maior probabilidade de arregimentar apoio popular.

Se a crise atual se agravar, os líderes políticos serão aqueles que arcarão com a responsabilidade principal - não por terem ignorado os mercados, mas por os terem levado demasiado a sério.
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* Dani Rodrik é professor de Economia Política na Escola de Governo John F. Kennedy na Universidade Harvard. Copyright: Project Syndicate, 2010. Podcast no link: media.blubrry.com/ps/media. libsyn.com/media/ps/rodrik45.mp3
Fonte: Valor Econômico online, 13/07/2010

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