terça-feira, 13 de julho de 2010

O goleiro e o jogo da vida

MOACYR SCLIAR*
A realidade, não raro, imita a ficção. Há exatos 40 anos, em 1970, o escritor alemão Peter Handke publicaria uma narrativa (depois transformada em filme por Wim Wenders) que, de certo modo, antecipava o escabroso assunto que mobiliza a atenção dos brasileiros, o caso Bruno-Eliza. O Medo do Goleiro diante do Pênalti (Angst des Tormanns beim Elfmeter) conta a história do goleiro Joseph Bloch, de Viena, desligado do time por tomar um gol de pênalti. À noite, vai ao cinema, ver um faroeste, e acaba dormindo com a moça da bilheteria, a quem assassina. Inicia-se então uma patética jornada, o ex-goleiro, cada vez mais perturbado, tentando escapar às consequências de seu crime. Uma espécie de jogo macabro, que o próprio Bloch compara à situação do goleiro diante do jogador que vai cobrar um pênalti: “O goleiro tenta descobrir em que canto o adversário vai chutar. Se ele o conhece, sabe que canto esse jogador prefere. Mas pode ser que o homem que vai bater o pênalti também esteja pensando da mesma maneira, e talvez chute no canto oposto. Porém, de novo, é possível que o adversário, partindo desse princípio, chute no canto habitual... E assim por diante.”

No time de futebol, o goleiro tem uma situação peculiar. Para começar, ele é um só. É o único que pode usar as mãos, característico maior de nossa humanidade, num jogo que depende dos pés, mas, de outra parte, é o único que, ao menos normalmente, não faz gols, o evento maior do esporte; ao contrário, tem de evitar que tal aconteça. Nada impede que o goleiro chegue à glória: o espanhol Casillas, capitão de seu time, carregando o troféu da Copa, é um exemplo. Mas nem sempre foi assim. Nas escolas da Inglaterra, berço do futebol, eram escolhidos como goleiros os alunos mais gordinhos, que, supostamente, guarneceriam a meta com o volume de seu corpo. Isso mudou, mas a singular situação de goleiro continua sendo reconhecida, tanto que existem treinadores especializados nessa área. “É preciso reconhecer que os goleiros têm um perfil especial”, diz um manual dirigido a esses treinadores, recomendando: eles devem ser amparados para que, tomando gols, não se sintam culpados ou inseguros.

A infância infeliz certamente deixou feias marcas em Bruno. Abandonado pelos pais, criado pela avó, não tinha nos familiares um exemplo muito bom: a mãe, usuária de cocaína, tentou matar uma mulher; o pai tinha problemas com a polícia e bem assim um irmão. Como muitos meninos pobres brasileiros, deve ter visto no futebol um mecanismo de ascensão social; e, como alguns poucos, conseguiu seu objetivo. Fez uma carreira bem-sucedida, ganhava um salário fabuloso, mas isso, para azar de Eliza Samudio, não neutralizou seu lado frustrado, violento, o lado que via na amante não uma pessoa, mas “um problema”. Uma situação comparável à do goleiro diante da cobrança de um pênalti que inevitavelmente resultaria em gol, se Bruno não fizesse alguma coisa. E ele, pelo jeito, fez.

No final do livro de Handke, Joseph Bloch está num estádio, assistindo a uma partida. Um pênalti vai ser cobrado. E eis o que ele, assassino e jogador frustrado, vê: “O goleiro ficou absolutamente imóvel. E o adversário chutou a bola bem em suas mãos”.

Irônico final. Compatível com o absurdo que, muitas vezes, caracteriza a vida.
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* Médico. Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 13/07/2010

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