sexta-feira, 2 de julho de 2010

A "ressurreição" de Tolstói

O último romance do mestre da literatura russa.

Tolstói:
retomada de personagem autobiográfico para expiar culpa antiga

Perto dos 50 anos, tendo já publicado suas duas maiores obras, "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina", Liev Tolstói (1828-1910) caiu em profunda depressão. Sentia-se esvaziado e impotente; a presença da morte pesava sobre todas as coisas e o impedia de seguir escrevendo.

A duras penas, encontrou refúgio intelectual e consolo espiritual no cristianismo, depois de perceber que a religiosidade popular provocava nele fascínio e reverência. Mas não se submeteu a ela - ao contrário, passou a denunciar as religiões organizadas de deturpar a essência do cristianismo, que estaria na postura ascética, na recusa terminante da violência e na fraternidade incondicional. A militância quase obsessiva provocou sua excomunhão pela Igreja Ortodoxa Russa em 1901.

"Ressurreição", o terceiro e último grande romance de Tolstói, é um testemunho desse período. No centenário da morte do escritor russo, o livro está sendo lançado em sua primeira tradução brasileira feita diretamente do idioma original. O tradutor, Rubens Figueiredo, é o mesmo da mais recente edição de "Anna Kariênina" no país, de 2005.

No prefácio, Figueiredo revela a coincidência que deu origem ao enredo de "Ressurreição". Um famoso advogado contou a Tolstói a história de um jovem aristocrata que, convocado para integrar um júri, reconheceu na ré uma criada que anos antes ele havia seduzido, engravidado e abandonado. Abatido pela culpa, o nobre queria obter a absolvição para casar-se com ela e retirá-la da prostituição.

Tolstói identificou-se na hora - ele, que também era aristocrata (nasceu conde), fizera o mesmo com uma camponesa das propriedades de sua família. O impacto foi tão grande que, ao decidir fazer da história o ponto de partida de um romance, o escritor retomou como protagonista o personagem de seus primeiros escritos autobiográficos, o príncipe Nekhliúdov.

A esplêndida primeira parte de "Ressurreição" narra ao mesmo tempo os rituais bufos do tribunal e a vida dos dois personagens até chegarem àquele momento. Nekhliúdov, tal como Tolstói, vinha de um longo período de dissipação seguido de uma passagem pela frente de batalha e de uma crise que o levou a distribuir parte de suas terras aos camponeses.

Por incompetência do júri, a acusada, Katiusha Máslova, é condenada a 15 anos de trabalhos forçados na Sibéria. Nekhliúdov se dispõe a acompanhá-la, mas antes assume o dever de buscar uma revisão da pena. Suas visitas à carceragem onde ela espera para cumprir a condenação o levam a abraçar a causa de vários outros internos, entre eles presos políticos comunistas e membros de uma seita religiosa.

A missão se transforma num périplo tragicômico entre aristocratas influentes, políticos e membros da poderosa burocracia estatal. Enquanto isso, Tolstói retrata com precisão clínica os deslizamentos mentais de Nekhliúdov, da mais profunda autoflagelação a picos de vaidade satisfeita com a própria e suposta generosidade. O livro encaminha-se para a correção moral do príncipe.

Nos dias de hoje, não é muito fácil tragar a peroração de Tolstói, com seu enaltecimento da culpa e da abstinência sexual. O que realmente salta das páginas de "Ressurreição" é o diagnóstico implacável (o autor, como se sabe, era anarquista) da futilidade corrosiva das instituições, que têm no sistema prisional seu ponto de culminância.
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Reportagem - Por Márcio Ferrari, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 02/07/2010

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