sábado, 3 de julho de 2010

Vaticano: o código vermelho depois da decisão norte-americana


Na beira do vulcão, a Santa Sé escolhe a tática do "ficar vendo", depois do pronunciamento da Suprema Corte dos Estados Unidos e se prepara para a defesa. No Vaticano, espera-se que não se chegue a uma citação diante de um tribunal norte-americano do cardeal secretário de Estado Bertone, do decano do Colégio Cardinalício Sodano, nem do próprio Bento XVI. A decisão da Suprema Corte de "não decidir" sobre a imunidade da Santa Sé nos processos de pedofilia (como pedido pelo próprio governo Obama) abre caminho, porém, para uma situação muito perigosa para o Vaticano.


O juiz do Oregon pode agora seguir em frente para estabelecer as responsabilidades específicas dos órgãos centrais do Vaticano no que se refere às transferências cúmplices do padre-predador Andrew Ronan (falecido em 1992), substituído pelas autoridades eclesiásticas da Irlanda para Chicago e, enfim, a Portland, onde continuou cometendo abusos.

Jeff Anderson, o advogado-príncipe dos processos por pedofilia nos EUA, preanuncia um pedido de depoimento de Bertone e Sodano. No Vaticano, nesse ponto, tentarão novamente pedir imunidade, esperando que a Suprema Corte decida pelo reconhecimento da não processabilidade de expoentes de um governo estrangeiro. Mas o que foge dos prelados vaticanos no dia da festa do dia 29 de junho, em que se exalta a autoridade suprema do papado, é que no Ocidente está em curso uma gigantesca avalanche de imagem e de prestígio da Igreja Católica, não mais vista e reverenciada como poder supranacional superior às leis estatais.

Os eventos dos últimos dias são o sinal de uma passagem de época. Durante 16 séculos, desde os tempos do Império Romano sob Constantino, Teodósio II e Justiniano, a Igreja foi construindo, passo a passo, uma imunidade estruturada em sistema, pelo qual o clero e os bispos nunca se submetiam à Justiça civil. Por isso, o clero e os bispos eram quase sempre intocáveis. Por isso, a hierarquia eclesiástica não tinha que "prestar contas" a ninguém dos seus assuntos internos.

Os processos nos Estados Unidos dos últimos anos e as condenações de ressarcimentos milionários infligidas às dioceses por causa dos casos de ocultamento da pedofilia racharam esse sistema. As comissões de investigação estatais como na Irlanda o sacudiram. A avalanche de eventos que ocorreram nas últimas horas o está despedaçando.

A Suprema Corte norte-americana não levou em consideração a concessão automática da imunidade. A Justiça belga (embora com uma ação espetacular provavelmente inútil, porque os bispos belgas teriam igualmente entregado os seus computadores e respondido aos interrogatórios sem o sequestro de toda a Conferência Episcopal por nove horas) colocou a liderança eclesiástica de uma nação na berlinda. Por fim, o comunicado vaticano sobre a Propaganda Fide – ao reconhecer os "erros" da congregação – são o testemunho de que o vento mudou.

De repente, a Igreja Católica foi arrastada do seu empíreo, do seu ser um "poder acima dos poderes terrenos", e foi obrigada a se confrontar com a opinião pública, com os pedidos de prestação de contas dos meios de comunicação, com as intimações diante das magistraturas estatais. As primeiras respostas do Papa Ratzinger não parece ser à altura do novo desafio.

O coro dos cortesãos, eclesiásticos ou não, já começou, exaltando a sua mudança reformadora, mas a situação é mais complexa. Bento XVI, sobre a chaga da pedofilia, teve um grande impacto moral, fazendo um mea culpa na Carta aos Irlandeses, colocando no centro o destino das vítimas, exortando a denúncia dos padres culpados à Justiça civil. Mas agora que o agravamento da crise pede uma resposta de "política eclesiástica", o Papa parece estar hesitante. A operação-limpeza na Itália – terra que se submete diretamente às diretivas papais – nem começou. A Conferência dos Bispos da Itália fornece respostas sobre centenas de casos de padres abusadores já esclarecidos e não inicia uma investigação nacional para descobrir as vítimas não ouvidas.

E mais: na segunda-feira passada, Bento XVI calou a boca do cardeal Schönborn, que havia levantado a questão das responsabilidades do cardeal Sodano, secretário de Estado durante o pontificado de João Paulo II, ao impedir uma investigação do Santo Ofício – então dirigido por Ratzinger – sobre o cardeal pedófilo austríaco Gröer e sobre o fundador pedófilo e concubino dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel.

Em um comunicado vaticano fora do comum, Schönborn foi obrigado a se desculpar pelas "interpretações dadas às suas expressões". Com dureza, declarou-se que, "na Igreja, quando se trata de acusações contra um cardeal, a competência cabe unicamente ao Papa". Os outros podem só fazer uma obra de "consultoria". É uma mordaça ao debate entre os máximos expoentes da Igreja, justamente na hora em que esse debate mais seria necessário, porque Schönborn não errou.

As investigações sobre Gröer e Macial foram verdadeiramente bloqueadas. O jornal Il Fatto possui uma carta privada de Gröer de 1998 em que o cardeal admite que a declaração pública – com a qual não forneceu explicações antes de renunciar – foi-lhe "submetida" para ser assinada, com o compromisso de um "santo silêncio, de um segredo (a ser observado)". E só do Vaticano podia vir a imposição ao purpurado pedófilo de um texto a ser assinado sob obrigação de silêncio. A mordaça a Schönborn quer impedir as revelações sobre os anos 80 e 90.

A missão do Papa, declarou Bento XVI em São Pedro nesta terça-feira, é "garantia de liberdade para a Igreja" nos confrontos com os "poderes locais, nacionais ou supranacionais" e de proteção da tradição católica de "erros concernentes à fé e à moral". Uma exaltação rochosa do primado papal. Porém, esta seria a hora de uma consulta de Bento XVI ao Colégio Cardinalício, em vez do isolamento na reafirmação do poder supremo. Sem a abertura de um debate transparente e coletivo sobre os erros do passados e as escolhas do futuro, a crise da Igreja está destinada a se agravar.
______________________
A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 30-06-2010.
A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: IHU online, 03/07/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário