O “infalível” Pio IX. Para eles, governos democráticos eram uma heresia
Ao acelerar processo de canonização de João Paulo II, papa Francisco flerta com versão amena do velho dogma da “infalibilidade”
Por Garrry Wills, no New York Review of Books | Tradução: Cauê Ameni e Gabriela Leite
No dia 3 de setembro de 2000, o Papa João Paulo II
beatificou o Papa Pio IX (beatificação é o terceiro e penúltimo degrau
para a santidade – certifica que um milagre verdadeiro foi produzido por
meio da intercessão de uma pessoa morta, estabelecendo um dia de festa
litúrgica para essa pessoa e autorizando a oração dos fiéis a ela). Pio
IX era uma figura de extremos. Arrancou do Conselho do Vaticano a
declaração de sua própria infalibilidade; condenou heresias modernas
como… o governo democrático; tomou de sua família
uma criança judia, Edgardo Mortara, com base no fato que a enfermeira
cristã do garoto batizou-o quando era criança — o que a faria pertencer à
Igreja, não a seus pais infiéis a Cristo.
Promover um homem como esse era um assunto delicado para
João Paulo II — mas ele ajudou a facilitar a entrada de Pio na lista de
abençoados ao beatificar simultaneamento o popular Papa João XXIII.
Apesar de liberais de todos os tipos não aprovarem Pio IX, apenas tipos
curiais endurecidos e sedevacantistas — crentes no “trono vazio”, que
sustentam que João XXIII não foi um papa legítimo — odiavam João, por
ter transformado a Igreja com o Segundo Conselho do Vaticano. O “bondoso
Papa João” era amado pela maioria dos católicos e por muitos
não-católicos — o presidente norte-americano Lyndon Johnson ofereceu a
ele a Medalha Presidencial da Liberdade. Os murmúrios sobre Pio foram
praticamente afogados pelas comemorações por João.
Agora, o novo Papa Francisco aparece com outro
emparelhamento purificador. Ele vai canonizar João Paulo II em tempo
recorde (Bento XVI já havia dispensado o intervalo de cinco anos após a
morte de alguém, normalmente necesário para que o processo de
beatificação comece). Apesar de João Paulo II não ser tão fortemente
criticado por liberais e pela esquerda como Pio IX, ainda é sujeito a
críticas profundas. Ele presidiu a igreja durante seu escândalo mundial
de pedofilia, e passou o problema para os cuidados do Cardeal Joseph
Ratzinger, a cabeça da Conggregação na Doutrina da Fé. Exatamente o
homem que, ao sucedê-lo, abriu mão ao espaço de tempo necessário para
começar a canonização de seu predecessor (quem poderia pensar que um
santo no céu alguma vez protegeria um padre predador?). João Paulo
tratou como “irreversíveis” suas posições em assuntos como
homossexualidade, casamento de padres e mulheres padres. Para algumas
pessoas, ele é um símbolo de coisas que precisam ser corrigidas na
Igreja.
Mas — para que ninguém se preocupe — o “bondoso Papa João” está sendo
novamente convocado ao serviço. Ele foi beatificado para tirar o foco
da promoção de Pio. Ele está sendo canonizado agora para fazer um par
celeste com João Paulo II. Para impulsionar João XXIII adiante, o Papa
Francisco está até renunciando à exigência de um segundo milagre para
canonização. João XXIII é o papa que se sai bem em tempos de tumulto,
até quando está sendo usado para sancionar a desordem causada por João
Paulo II.
Sem dúvida, o Vaticano sente que, ao combinar um herói
liberal com um conservador, mostra como é grande a sombra de seu
baldaquino sagrado; a santa instituição transcende as políticas
terrestres. Além disso, espera-se que o processo de canonização moderno
tenha inoculado a santidade na política, baseando-se em evidências
objetivas, previstas por documentos, interrogatórios, exames médicos,
certificados científicos — um leque de técnicas iluministas usadas para
sancionar um conceito pré-iluminista. Mas, após toda uma longa
preparação, apenas o Papa pode declarar que um milagre sobrenatural
aconteceu — e dizer quem o fez contecer, o endereço particular no céu
para o qual os fiéis a ele devem orar. O Papa sabe o endereço, e
certifica sua recepção pela parte correta. Isso, de fato, muita
sabedoria…
Os papas modernos têm sido cautelosos ao invocar o suspeito dom divino, ou infalibilidade,
um dogma que Pio IX arrancou de seu Conselho Vaticano. É um poder que
foi usado apenas uma vez, em termos técnicos, na definição, por Pio XII
(em 1950) de uma doutrina supostamente não-controversa — a Assunção de
Maria ao céu. Mas, no lugar de infalibilidade, os papas recentes
encontraram muitas maneiras de descrever seus atos como
quase-infalíveis, irreversíveis, universais. É aí que o processo de
canonização se encaixa. Dá ao Papa um tipo de porta dos fundos à
infalibilidade. Este diz definitivamente que uma pessoa está no céu,
pode fazer milagres, e participou de alguns deles (ou, do caso de João
XIII, um único).Essa familiaridade com o tráfico sobrenatural
assemelha-se ao poder do papa (raramente exercido, agora) de dizer quem
sai do purgatório com uma indulgência plena. Se ele tem tal poder de
saber sobrenaturalmente das coisas, que conhecimento terreno pode
negá-lo? Sem dúvidas, João Paulo II canonizou e beatificou centenas de
pessoas (muito mais que qualquer outro papa). Cada selo de entrada no
céu autentica o poder do papa de selar aqui em baixo. E cada vez que um
papa canoniza outro papa, ele está completando um circuito de
autenticações recíprocas. É surpreendente que tantos papas tenham sido
canonizados?
Não é como as primeiras preces da igreja — com Cristo, por
Cristo e em Cristo — pronunciadas muito antes que existisse um papa para
determinar que orações eram ou não permitidas. A ideia de que todos os
crentes, vivos e mortos, são membros do corpo místico de Cristo
construída em redor do local de seputamento dos mártires. Chesterton chamou
a tradição de uma “democracia dos mortos” — pela qual os antepassados
ainda votam por nós. Essa foi a concepção, na comunidade cristã, de uma
unicidade contínua em todos os seus membros. Ao invés disso, há hoje uma
maneira embaraçosa, oficialmente monitorada e extremamente cara de
declarar que um fiel é santo e pode receber orações numa missa. Outra
razão para as canonizações dos papas é que todos os custos são internos.
As ordens religiosas, como os papas, têm uma vantagem
monetária ao fazer seus fundadores virarem santos — como o fundador da
Opus Dei, Josemaria Escriva, que foi canonizado por João Paulo II. Uma
ordem religiosa pode mobilizar grandes recursos — para prospecção,
certificação, lobby em Roma — de suas casas, membros e benfeitores. O
gasto de tempo, energia e dinheiro vale muito a pena se o fundador é
canonizado. A festa, os lugares, santuários e relíquias do
santo-fundador — tudo isso promovem a ordem, seu funcionamento, seu
recrutamento de novos membros e ainda a arrecadação de fundos.
Há um tipo de humor triste no esforço de algumas pessoas de
bom coração que estão promovendo a canonização da ativista social,
pacifista e fundadora do The Catholic Worker Dorothy Day,
usando métodos de glorificação subsidiada que zombam de seus próprios
valores e preocupações. Do mesmo jeito, é um pouco triste ver o Papa
Francisco, que tem feitos coisas ótimas em seu curto período no
Vaticano, jogar o velho jogo de auto-certificação no topo de uma fábrica
de fazer santos. Muitos têm a esperança de que ele vá fazer as mudanças
necessárias na Igreja. Mas ao promover João Paulo II, ele está
exaltando um homem que combateu cada uma dessas mudanças.
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Por Redação
Fonte: http://outraspalavras.net/destaques/assim-se-fazem-os-santos/
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