sábado, 7 de dezembro de 2013

A intimidade pública

 
Não é de hoje que as biografias são o principal interesse da professora argentina Leonor Arfuch, que pesquisa o tema desde os anos 1990, a partir de um enfoque multidisciplinar. Atualmente uma referência na área, por conta do livro O Espaço Biográfico: Dilemas da Subjetividade Contemporânea (EdUERJ, 2010), ela acaba de lançar em seu país mais o estudo Memoria y Autobiografía: Exploraciones en los Límites – anda sem edição no Brasil. Na obra, ela tenta demonstrar a importância de relatos autorreferentes na história recente argentina a partir de escritos, filmes, debates, obras de artes visuais e fenômenos midiáticos.

Nesta semana, a professora do departamento de ciências sociais da Universidad de Buenos Aires (UBA) esteve em Porto Alegre para um simpósio do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT) da UFRGS. Aqui, pôde conhecer um pouco mais das particularidades brasileiras em relação aos relatos biográficos, como a recente polêmica gerada por conta do grupo Procure Saber. Ela concedeu a seguinte entrevista ao Cultura:

Zero Hora – Qual foi sua motivação para estudar biografias?
Leonor Arfuch – Comecei a trabalhar a temática das biografias nos anos 1990, percorrendo anos de pesquisa. O que denominei “espaço biográfico” já era uma tendência que se percebia, por exemplo, na política. Cada vez mais, a vida pessoal dos políticos estava ganhando importância, muito além das características programáticas. Também nas ciências sociais começavam a importar cada vez mais os relatos pessoais e autobiográficos em relação aos dados quantitativos. Percebia-se que algo estava acontecendo. Também nas artes e na literatura isso se manifestava, gerando aquilo que se denomina “autoficção”, gênero não propriamente autobiográfico, mas que de algum modo aborda este tipo de temática e de problemática, mesmo não usando um “eu” pura e realmente autobiográfico. Com isso, defini o “espaço biográfico” contemporâneo como algo além dos gêneros canônicos como biografias, autobiografias, memórias, e sim como uma tendência da subjetividade que envolvia aspectos distintos. Via tudo isso como uma tendência crescente, até que, ainda nos anos 1990, apareceram os reality shows. Pessoas que poderíamos chamar de “comuns” começaram a aparecer nas telas, exibindo sua intimidade em espaço público. Aí começou algo como uma “intimidade pública”, que se ampliou ainda mais e hoje temos todo esse fenômeno de Facebook e outras mídias. Nesses espaços, o que importa realmente é a demonstração do “eu”, da interioridade. Em geral, o espaço biográfico parece não ter limites, aparece também na fotografia e nas artes plásticas... O interessante é questionar o que isto demonstra e por que se dão estes registros.

ZH – E a partir de que perspectiva observa estes objetos de estudo?

Leonor – Desenvolvi este tema no meu livro O Espaço Biográfico, que circulou muito pelo Brasil. Minha perspectiva de análise é multi ou transdisciplinar, venho do campo de Letras, e está presente aí a linguística, a análise de discurso, a semiótica, as teorias do discurso, toda essa trama de reflexões sobre a linguagem. Também há a teoria da narrativa, que se articula como a literatura, a filosofia, a história, a sociologia e também com a psicanálise. A partir das leituras, o pesquisador pode ir articulando esses diferentes conhecimentos, colocando em diálogo autores que tenham certa possibilidade combinatória, ainda que não concordem plenamente entre si. Eu diria que a chave de uma abordagem transdisciplinar é não ter preconceitos, ter a mente aberta e deixar de patrulhar fronteiras, ou seja , não ficar disputando se algo é psicologia ou sociologia ou outra coisa... Não quero dizer que todas as iniciativas transdisciplinares sejam coerentes e sustentáveis. Pode, sim, haver usos indevidos, misturas estranhas. É como os ingredientes de uma boa bebida, às vezes se combinam, às vezes não, por mais que os agitem (risos).

ZH – A exploração do “eu” pelas redes sociais pode ser um modo de cada um editar um mundo próprio?

Leonor – Tudo isso são hipóteses, mas se poderia pensar que a vida contemporânea é uma vida com alto nível de uniformidade, as pessoas tendem a se vestir todas de acordo com suas diferentes tribos urbanas. Há também um modelo de vida de sucesso que, em geral, permanece. A competição é dada como algo natural, incorporando-se à nossa vida cotidiana de um modo que ninguém se pergunta se o objetivo da vida é competir para chegar mais alto ou fazer o que cada um tem interesse. Então, diante desta sociedade de grande uniformidade, carência de horizontes e disputas sociais crescentes, quem sabe esta seja uma maneira de cada um aparecer com suas próprias estratégias de apresentação, ocupando um lugar nesse diálogo. E, além disso, se podemos considerar que as redes sociais comunicam, a pergunta seria como elas comunicam. Parece haver uma enorme proximidade, mas há também uma distância dos corpos, dos encontros. As mensagens de celular, que me incomodam muito e uso o menos possível, tomam o lugar da voz. Assim, desaparece a conversação, mesmo pelo telefone. E quando os encontros acontecem, cada vez mais são em ambientes tão ruidosos, em bares e restaurantes com um barulho terrível, com luminosidade muito baixa, que chego a me perguntar se há realmente um encontro. Mas, se por um lado as redes tomam o lugar dos encontros, dos movimentos, até mesmo dos protestos, por outro, também os geram. Tanto aqui como na Argentina e em outros países do mundo, um protesto pode começar numa rede social e virar uma manifestação de rua. Há uma ambiguidade a ser compreendida e enfrentada.

ZH –A senhora tem acompanhado a polêmica em torno das biografias não autorizadas no Brasil?

Leonor – Pelo pouco que tenho acompanhado, posso dizer que é um tema delicado. Há quem faça biografias extraordinárias de filósofos, escritores, artistas, políticos, jornalistas... E há também efetivamente quem as faça somente para lucrar, publicando coisas que não são verdadeiras ou aspectos da vida que poderiam ser mantidos em segredo por uma questão de privacidade. Creio que o biografado tem um certo direito de “propriedade” de sua vida. Depois que a biografia é publicada, a pessoa envolvida pode precisar passar a vida fazendo desmentidos, denúncias... Por outro lado, qualquer um pode dizer qualquer coisa de qualquer pessoa, assim é a democracia. Por isso é um tema complicado, sendo necessário modular essas duas esferas: a privacidade invadida e o direito a se expressar.

ZH – Mas não lhe parece que isso desestimula os biógrafos? Podemos carecer de biografias de escritores e artistas que talvez seriam importantes para o nosso país...

Leonor – Não acredito que as biografias sejam imprescindíveis para apreciar a obra de alguém. Às vezes são importantes, porque efetivamente há dados da biografia que de alguma maneira explicam elementos presentes da obra. E mais: o grande escritor argentino Juan José Saer (1937 - 2005), dizia que, na realidade, as autobiografias não consistem nesses acontecimentos da vida como datas de nascimento, casamento, viagens, e sim em uma trama secreta, interna, que só é perceptível no que se escreve. Ou seja, se há algo de autobiográfico verdadeiramente profundo, isto está no escritos, nas obras. É preciso ler sutilmente para perceber a cadência desses registros, que podem dizer muito mais do que saber quantas vezes um artista se casou ou detalhes deste tipo.
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REPORTAGEM POR ALEXANDRE LUCCHESE | Especial
FONTE: ZH on line, 07/12/2013
Foto: A pesquisadora Leonor Arfuch em Porto Alegre: nome de referência nos estudos sobre biografia e subjetividade

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