João Pereira Coutinho*
Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista
Minha vizinha é linda. Minha vizinha é de esquerda. Um problema?
Não para mim, uma alma tolerante e pluralista e mentirosa. Para ela. Mas, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes.
Aconteceu em setembro. Começou o ano acadêmico em Lisboa e uma espanhola
mudou-se para o apartamento ao lado do meu. Encontrei-a na porta da
rua, transportando as malas. Ofereci ajuda. Resposta dela: "Lá porque eu
sou mulher você pensa que não consigo?".
Alarme. Feminista na área. Fugir, fugir, fugir --eis o sinal luminoso
nos meus neurônios. Mas fugir daqueles olhos absurdamente azuis?
Não, claro que não, e depois falei de uma hérnia discal precisamente por
excesso de peso. "É preciso ter cuidado." Ela comprou a primeira
mentira. Se Deus me der tempo e saúde, outras se seguirão.
História da donzela: veio para Portugal apaixonada pela literatura dos
lusos. A ideia é fazer doutorado, ficar uns anos, experimentar a vida do
país. Excelente ideia.
"Pena chegar com esse governo fascistinha, você não acha?", perguntou ela.
Explicação prévia: o governo português atual, que alguns consideram de
centro-direita, tem sido um exemplo de socialismo no seu pior. Sobretudo
carregando nos impostos como nenhum governo socialista antes dele. Mas o
que responder? A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade?
Não. A mentira, só a mentira, nada mais que a mentira. "Fascistinha é dizer pouco", murmurei com venenoso sarcasmo.
E eu? Quem sou eu? Que faço? Quais são os meus gostos e desgostos? Falar
de colunismo e televisão e livros é matéria interdita. Livros? O último
chama-se "Por que Virei à Direita", Deus do céu.
Respondi vagamente ("dou aulas") e depois menti vagamente ("mas o meu
sonho é trabalhar numa ONG"). Os olhos dela brilharam e eu senti o meu
cachet a subir.
Mas tanta mentira desgasta. Voltando aos livros, é impossível esconder a
biblioteca inteira. Foi o primeiro momento em que a máscara quase caiu.
"Você lê muito autores de direita, não?", perguntou ela, olhando para
as estantes com os meus Hayeks, os meus Oakeshotts, os meus Voegelins.
Pausa. Sangue frio. "Você tem que conhecer o inimigo", respondi. Ela
concordou. E depois perguntou pelos autores da minha vida. "Tirando o
Slavoj Zizek? Não vejo mais ninguém com qualidade hoje em dia."
Ela não conhecia Zizek. Com luvas e máscara de proteção, comprei um
livro do ogro no dia seguinte. Foi o meu presente de aniversário em
outubro. Ela gostou de Zizek; mas, surpresa das surpresas, achou as
páginas sobre a necessidade de violência revolucionária um pouco
excessivas. "Por causa dos inocentes", disse ela.
Eu poderia ter ficado calado. Não fiquei. "Mas você acha que no
capitalismo há mesmo inocentes?" Silêncio. E epifania: a única forma de
trazer esse anjo um pouco mais para o centro é eu próprio radicalizar-me
à esquerda.
Dito e feito: nos últimos tempos, as conversas ficaram surreais. Defendo
Cuba. Defendo a Venezuela. Ataco os Estados Unidos até pela falta de
água em Lisboa.
E sobre os colunistas de direita que "invadiriam a mídia", os tribunais
deveriam fazer qualquer coisa. "Onde está a liberdade, afinal?",
pergunto eu, indignado.
De resto, a crise europeia tem responsáveis perfeitamente identificáveis
("a ganância dos bancos") e o "aquecimento global" é a maior ameaça à
vida na Terra ("e quem diz o contrário deveria ser preso").
O resultado desse cortejo de insanidades está na moderação dela, que
cresce de dia para dia: por cada loucura minha, ela tenta um equilíbrio.
"Você é muito radical", eis o mantra dos últimos tempos. Eu medito,
faço cara de caso. Depois rendo-me e concordo. "Sim, você tem razão."
O objetivo, agora, é virar o barco para a direita por influência dela.
Há sinais de esperança. Tímidos. Tênues. Dias atrás, assistindo ao
biopic sobre Thatcher com Meryl Streep no papel da "dama de ferro",
arrisquei: "Essa Thatcher era mulher de coragem. Fascista, mas de
coragem".
Ela completou. "Eu gosto dela. Quando você é mulher, tem que ser um
pouco fascista num mundo de homens." Repicaram os sinos na minha alma.
Se as coisas continuam assim, no próximo ano estaremos os dois no Fórum
da Liberdade de Porto Alegre, a cantar hossanas a Milton Friedman e à
escola de Chicago. E por que não?
Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista.
--------------------------------
* Jornalista. Escritor. Historiador português. Colunista da Folha.
Fonte: Folha online, 10/12/2013
Imagem da internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário