"Miserere", o novo livro de poemas da mineira Adélia Prado (Record),
leva ao extremo um caminho que a poeta nunca abandonou: a mistura,
implacável, entre poesia e mística. Para Adélia, poeta e místico lidam
com os mesmos materiais: o mistério, a unidade original, o inalterável
caminho do homem da imperfeição rumo à perfeição. A miséria é, portanto,
uma condição intermediária, transitória, que só aponta para o próprio
fim, como já saberiam místicos e poetas.
Nesta entrevista, Adélia Prado expressa, delicadamente, um pouco de
sua mágoa a respeito da incompreensão que, por causa da aliança entre
poesia e fé, sempre cerca sua poesia. "Já apodaram o que escrevo de
poesia de sacristia", desabafa, entristecida. Mas, contrita, prefere
seguir a admoestação de São Paulo: "Agir contra a convicção é pecado".
Por isso mesmo, o livro de Adélia é atordoante: ele trata, ao mesmo
tempo, da profunda imperfeição humana - expressa na fragilidade da
linguagem - e de sua tendência inexorável ao reencontro com a perfeição.
Expõe feridas graves para, por meio delas, mostrar a porta da salvação.
O forte fundo religioso de seus poemas, contudo, não deve assustar os
leitores agnósticos ou ateus. Ou mesmo os que, ao contrário dela, não
sejam cristãos, abracem outros credos. É uma poesia que, do início ao
fim, fala sempre do grande espanto que é viver. Dor e maravilha,
paradoxo sem fim, que só a pena do poeta - como a alma do místico -
consegue integrar e acolher.
Em seus poemas, o universo inteiro, até mesmo Satanás, está
contaminado pela miséria humana. Ela escreve: "A Deus entrego meu
pecados,/ entrego-os a quem pertencem,/ não a Satanás que é um dos
nossos/ e sofre também o tormento dos filhos/ que têm o Pai ocupado em
alimentar pardais". Em um mundo que é pura dor, pura miséria, a poesia
aparece, para Adélia Prado, como uma forma de salvação. Sobre a
incompreensão que, tantas vezes, a cerca, ela pergunta, sempre perplexa:
"Por que é tão difícil aceitar um pobre crente pelejando para viver sua
fé e escrevendo poesia?"
Valor: "Miserere" parece ser o livro mais triste
que você já escreveu. Também aquele que vai mais fundo nas relações
entre poesia e mística. O que você pensa dessas duas avaliações?
Adélia Prado: A cada novo poema se confirma para mim
o parentesco genético entre mística e poesia. Braços de uma mesma e
única fonte, que não está no poeta, mas lhe doa a água da qual bebe e
tenta expressar com mais ou menos acerto. Ambas, mística e poesia, me
centram numa dimensão de sentido e significação da vida e do mundo. São
experiências que incluem maravilhamento e dor. Todo místico, o que eu
não sou, se expressa poeticamente, pois essa é a única linguagem capaz,
através de seus paradoxos, de esboçar palidamente as vivências
transcendentais ou mais propriamente espirituais. Eu sou apenas poeta e
como tal muito feliz por ter a mística como vizinha. Ambas experimentam o
real, a mística em um grau que nem suspeitamos. Lendo os místicos nos
aproximamos do que falaram.
"Por que é tão difícil aceitar um pobre
crente pelejando para viver sua fé e escrevendo poesia?", pergunta a
poeta,
sempre perplexa
Valor: Seus poemas falam também de um mundo
abandonado por Deus, onde "tudo segue a si mesmo" naturalmente (está em
"Pontuação"). Parece haver um fatalismo em sua poesia. Você é uma mulher
fatalista?
Adélia: Nunca. Não sou fatalista de jeito nenhum.
Acho incongruente poesia e fatalismo, pois ela é exatamente o que é vivo
e novo a cada vez. Fatalidade é condenação. Poesia é voo e libertação.
Valor: Quanto mais seu misticismo se adensa,
mais a vida lateja em seus versos. Talvez alguns se surpreendam com esse
misticismo que, em vez de elevar, leva para o chão.
Adélia: Poeta e místico são os que têm mais
ferramentas para nos centrar na realidade, que muitos acham que está no
chão. A realidade não tem uma dimensão localizável. Experimentá-la é
romper a barreira da aparência. O que parece ser uma pedra apenas se
revela a olhos atentos.
Valor: No belo "Lápide para Steve Jobs" você
contrapõe o poder terreno de um grande homem - o magnata da informática -
ao desamparo provocado pela indiferença de Deus. Poderia falar dessa
indiferença? Em que medida ela nos lança em uma inexorável solidão?
Adélia: Já pensou se sentir criatura e não recorrer a um criador? É de desesperar. É mais que solidão, é inferno.
Valor: Em outro poema, "Distrações no Velório",
você fala da necessidade de suportar a existência e também de um cansaço
do mundo, expresso no desejo de fazer um retiro. Em nosso mundo
superpovoado, quase não restam chances para um retiro. Divinópolis é seu
retiro?
Adélia: Às vezes, faço retiros. Recomendo os
"Exercícios Espirituais de Santo Inácio". Não podendo, toda pessoa tem
dentro de si espaços invioláveis onde é possível habitar, fazer
contatos, mesmo dentro do bulício da casa ou do mundo. Temos de cuidar
do nosso jardim, do confortável interno. Sem isso, nos desidratamos
psicológica, física e espiritualmente.
Valor: Você nos fala também, em "Pingente de
Citrino", do frágil limite entre os atributos humanos. Mostra o homem
como um ser de paradoxos. Descobre súbitas semelhanças entre o que
parece absolutamente distante. O ser humano é indecifrável? Somos
regidos pelo mistério?
Adélia: Tudo é mistério. E nós, um mistério que
falamos a respeito. Ser misterioso não é necessariamente ser
indecifrável. Peço socorro a São Paulo: "Agora vemos de maneira confusa,
por espelhos, mas depois veremos face a face". Creio nisso.
Valor: Admiro muito um poema como "O Que Pode
Ser Dito", que fala da imensa fragilidade da linguagem, que deixa quase
tudo de fora. Um dia, de repente, as coisas surgem à nossa frente. É
tudo uma questão só de saber olhar?
Adélia: Sem sair de si mesmo não aprendemos a ver
nem a ouvir. Quando chega a graça, vemos e não há como voltar atrás.
Seria catastrófico. Tudo é uma questão de despertar. Sim, saber olhar.
Valor: Até que ponto literatura e religião, nas mãos de Adélia Prado, também experimentam essa explosão de fronteiras?
Adélia: Na "Bíblia", em primeiro lugar, literatura e
religião explodem às vezes com muito escândalo. A beleza na poesia e
Deus na fé podem ser muito desconfortáveis. Ver a circulação do próprio
sangue deve ser maravilhoso, mas não necessariamente relaxante.
Valor: No mínimo "Num Jardim Japonês", você
escreve: "Ao minuto de gozo do que chamamos Deus,/ fazer silêncio ainda é
ruído". Pergunto: o ser humano está preparado para Deus?
Adélia: Creio que fomos criados por Deus e para ele.
Estar despreparado é estar ainda inconsciente de nosso destino eterno.
Mas como fiéis e infiéis somos todos seus filhos, cada um será chamado e
despertará.
Valor: Você fala da naturalidade do cosmos, que
se desenrola indiferente às aflições humanas. Também é assim quando você
escreve poesia - algo surge indiferente a seus desejos e aflições?
Adélia: Perfeitamente. Isso mesmo. Não diria indiferente, porque a poesia também é cosmos.
Valor: Em "Inconcluso", você nos fala de um
sonho inconcluso que, no entanto, não parece levar ao pessimismo. Você é
uma mulher de sonhos? Os sonhos nos fazem bem ou fazem mal?
Adélia: Sonho demais. Adoro sonhar. Os sonhos nos
fazem bem, até os maus sonhos, que se considerarmos com atenção é nossa
alma nos mandando recados.
Valor: Já em "Sacramental", você pede a Deus
perdão pelo desejo de ser perfeita - enquanto a vida se desenrola
imperfeita. Você parece colocar a vaidade entre os mais graves dos
pecados. Vivemos em um mundo de grifes, passarelas e superexposição.
Como você se sente nele?
Adélia: Me sinto bem. Amo o mundo, o planeta, a
vida, tão imperfeita e maravilhosa, a aventura de a cada dia tentar amar
melhor coisa e gente. Evito o que me perturba, o que pode me tirar do
centro. A tecnologia é bem-vinda. O problema não é a máquina, somos nós.
"Acho incongruente poesia e fatalismo, pois
ela é exatamente o que é vivo e novo a cada vez. Fatalidade é
condenação.
Poesia é voo e libertação"
Valor: Em "Sala de Espera", você escreve: "Tudo é
igual a tudo,/ mas por agora a unidade nos cega". Trata-se de uma
crítica ao individualismo? Contudo, em uma realidade na qual estamos
todos solitários, não nos tornamos prisioneiras da unidade e do Um? É
possível ultrapassar o individual? E isso seria bom?
Adélia: Falo da origem comum de todas as coisas
(big-bang). Não somos capazes agora (fora os místicos e de novo eles) de
experimentar a unidade de tudo. Temos que nos haver com a pluralidade. A
unidade é a vocação primeira do que existe, coisas e pessoas, voltar à
origem. O casamento é uma tentativa de unidade. O que tenta subsistir
separado do resto é fadado à destruição. Precisamos das coisas e uns dos
outros. Só na unidade final, na Parusia, é que todos descansaremos,
bicho, coisa, gente e Deus. A unidade não tem a ver com individualismo.
Valor: No mesmo poema, você escreve: "Nunca me
senti moradora,/ a sensação é de exílio". No cenário da literatura
brasileira contemporânea, você se sente uma solitária? Parece que o
misticismo é um dos obstáculos maiores de acesso e aceitação de sua
poesia, que muitos confundem com oração. Isso a incomoda?
Adélia: O problema religioso causa e sempre causará
incômodo, porque apela sempre ao profundo de cada um, obrigados a ver
algo que não queremos. Supõe adesão, compromisso e a difícil humildade
de se admitir criatura, carente, imperfeita, necessitada de comida e de
sentido. É mais fácil, até certo ponto, ser descrente. As mais belas
orações se revelam poesia. Por que a poesia não pode mostrar-se como
oração? Não gosto de dizer isso, mas sou obrigada se quero respondê-lo.
Quem não aceita a poesia por causa da oração desconhece uma e outra. Já
apodaram o que escrevo de "poesia de sacristia". Para tais pessoas, o
ateísmo, a descrença, tem enorme charme. Continuo escrevendo do mesmo
jeito, porque não sou boba de desobedecer a São Paulo, um apóstolo muito
brabo: "Agir contra a convicção é pecado". Há poetas ateus
maravilhosos. Há desesperados maravilhosos, os suicidas, os loucos. Por
que é tão difícil aceitar um pobre crente pelejando para viver sua fé e
escrevendo poesia?
Valor: Impressionam-me, muito, os versos - que
me parecem ameaçadores - de "Rapto". Transcrevo: "Quando a máxima
atenção te deixa distraído,/ o sequestrador te pega/ e diferente daqui/
conhecerás o lugar/ onde quem desperta repousa". Somos prisioneiros do
susto? A vida está sempre onde não esperamos que ela está? O mundo é dos
sensitivos?
Adélia: O mundo é de todos, sensitivos, brutos,
insensíveis, alienados, inteligentes. Mas é que, de vez em quando, muito
de vez em quando, uma janelinha se abre e botamos o pé num lugar
diferente e maravilhoso, onde a vida palpita com indizível esplendor.
Não é nada ameaçador, pois já viramos esse lugar sem compreendê-lo. É
tão bonito que dá susto mesmo.
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