Sérgio Augusto*
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Maratona: A redatora Mita Diran morreu após três dias de esforço ininterrupto
Trabalhar demais nos incute a ilusão de que não somos tão insignificantes assim
Em sua última postagem no Twitter, no dia 14, Mita Diran
cantou vitória: "30 horas de trabalho e continuo fooorte". Horas
depois, já nada forte, Diran morreu. Redatora de publicidade da Young
& Rubican da Indonésia, Diran foi a mais recente vítima do que os
japoneses batizaram de karoshi (overdose letal de trabalho) a ganhar
destaque no noticiário internacional. No mesmo dia, a revista britânica
New Statesman publicou um vigoroso ensaio de Steve Poole, Por Que o
Culto ao Trabalho Intenso é Contraproducente, que Diran não teve tempo
de ler.
Se a jovem publicitária sucumbiu a um autoimposto desafio ou a uma
disputa subliminarmente estimulada por seus patrões é detalhe
secundário. O fato concreto é que ela, com ou sem o aditivo de uma
bebida energética, morreu por trabalhar demais e repousar de menos. Ou
seja, por incidir no mesmo erro que milhões de pessoas cometem
diariamente no mundo inteiro.
A impressão que se tem é que a humanidade nunca esteve tão "ocupada",
tão "sem tempo pra nada", "trabalhando alucinadamente", "morta de
cansaço". O desemprego grassa, mas também por isso trabalha-se mais e
por mais tempo: no subemprego, nos frilas, na faina informal; fora e
dentro de casa, em plantão permanente, inclusive nas horas de lazer. E
ainda exigem que sejamos mais rápidos. Em prol de um inquestionado valor
de nosso tempo, a produtividade.
Daí o astucioso neologismo busyness, amálgama de ocupado (busy) e
negócio (business), supostamente criado por Andrew Smart, no livro
manifesto Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing, e
popularizado por Tim Kreider, na página de opinião do New York Times, no
ano passado. "Ocupação" seria a tradução perfeita se já não
significasse, em português, qualquer tipo de trabalho. Adotemos o
busyness.
Até as crianças andam mais "busy" hoje em dia, metidas em atividades
extracurriculares, terapias ocupacionais e solicitações eletrônicas, sem
folga para as folganças de gerações passadas, sem tempo para o dolce
far niente contemplativo, para o ficar bestando sabidamente regenerativo
e potencialmente criativo. E como é de pequenino que se torce o pepino,
já existem manuais de autoajuda para se educar crianças a administrar
bem seu tempo, vale dizer, ajustá-las precocemente à lógica do
capitalismo moderno, do "tempo é dinheiro", da eficácia regida por
algoritmos e outros prodígios da tecnologia da informação corporativa.
Que, aliás, não são infalíveis, embora intensa e piamente utilizados na
contratação de funcionários por empresas do Vale do Silício.
A presente e histérica sobrecarga de afazeres, salienta Tim Kreider,
nem sempre é uma necessidade ou uma inevitável condição de vida; é uma
opção, voluntária ou aquiescente, alimentada por uma espécie de consolo
existencial, um antídoto contra a sensação de vazio e a solidão. Uma
agenda cheia, ainda que de compromissos tão ou mais dispensáveis que a
maioria das ligações feitas ou recebidas pelo celular, é uma anfetamina
espiritual, um placebo que nos incute a ilusão de que afinal não somos
tão prescindíveis e insignificantes assim.
Crescemos e nos multiplicamos ouvindo toda sorte de platitudes em
favor do trabalho, que ele enobrece o homem, dá sentido à vida. Mas
Deus, como gostava de lembrar Millôr Fernandes, só falou em trabalho
depois que o homem comeu a maçã, o que configura duas coisas: que o
trabalho foi um castigo (a palavra trabalho vem do latim tripalium, um
instrumento de tortura) e o destino humano era a vagabundagem. Ou a
ociosidade criativa preconizada pelos filósofos gregos, por Sêneca,
Montaigne, Lafargue, Russell e toda uma linhagem de sábios, que passa
por Ascenso Ferreira e alcança Camus ("Os ociosos é que transformam o
mundo, porque os outros não dispõem de tempo para fazê-lo"), Milan
Kundera e Thomas Pynchon. O Princípio de Arquimedes, não custa lembrar,
nasceu num banho de banheira. E a Lei da Gravidade, quando Newton
relaxava debaixo de uma macieira.
Em plena vigência do moralismo cristão ("Ganharás o pão com o suor do
teu rosto", etc.), radicalizado pela ética do trabalho protestante, e
dos primeiros desdobramentos do taylorismo, Cesare Pavese proclamou:
"Lavorare stanca" (trabalhar cansa). Publicou um livro com esse título,
na Itália fascista, mas não foi preso por isso. O fascismo, apesar de
tudo, não fez da ergolatria uma doutrina de Estado como os nazistas (que
afixaram nos pórticos de seus campos de concentração o mote "Arbeit
Macht Frei", o trabalho liberta), os comunistas soviéticos (que
inventaram o stakanovismo), e a ditadura do Estado Novo (que proibiu
sambas e marchinhas simpáticos à malandragem).
O stakanovismo foi um movimento de massa visando a elevar os níveis
de produtividade na União Soviética. Inspirou-se no recorde sobre-humano
de extração de carvão batido pelo mineiro Alexei Stakanov, em 1935, que
Stalin manipulou como "um exemplo para mostrar ao mundo a eficácia do
sistema de trabalho socialista". Em 1976, o cineasta polonês Andrzej
Wajda fez um ótimo filme sobre um pedreiro da Cracóvia acometido de
stakanovismo, O Homem de Mármore. Está na hora de alguém abordar o
stakanovismo do nosso tempo, o karoshi digital. Ou será que Mita Diran
morreu em vão?
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* Colunista do Estadão
Fonte: Estadão online, 22/12/2013
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