Marcelo Reis de Mello*
Delicadeza é uma palavra ambígua, difícil. Poderíamos usá-la para
denunciar o lirismo comedido e afetado, como fez João Cabral em sua
"Antiode": "Delicado, evitava/ o estrume do poema,/ seu caule, seu
ovário, suas intestinações". E muito antes do pernambucano o simbolista
francês Arthur Rimbaud já tinha escrito: "Por delicadeza/ Perdi minha
vida". Mas também há quem enxergue na delicadeza uma potência positiva e
uma sutil resistência à brutalidade do mundo. Além disso, a palavra
sempre foi usada para enfatizar a perícia técnica e a sensibilidade
invulgar dos poetas, não sendo difícil ler por aí que os versos de
Drummond ou Bandeira - para ficar apenas com os exemplos canônicos - são
de uma delicadeza extraordinária.
Tudo isso para dizer que o sexto livro do poeta carioca Eucanaã
Ferraz, "Sentimental" (Companhia das Letras, 96 págs., R$ 32,00), é
certamente delicado. Mas não é doce. Nem limpinho. Seu coração é uma
víscera empedrada: "Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com
força". Dentes fortes sim, sem dúvida, mas não para despedaçar ou
despoetizar a poesia, como reivindicam alguns entre os seus pares.
Ferraz não é um poeta barulhento, de punho cerrado e boca espumante. Mas
nos melhores momentos a sua poesia é vigorosa, é radical.
Quando o livro "Desassombro" foi lançado, em 2002, Francisco Bosco
afirmou acertadamente que Eucanaã Ferraz trabalha na "radicalidade dos
desextremos". E é isso que o leitor encontra em todos os seus livros,
inclusive no mais recente, no qual se recombinam os temas e as formas
cristalizadas da tradição literária, para deslindar suas brechas, os
interstícios, as margens dentro das margens.
Destacado no complexo cenário da poesia brasileira contemporânea por
Heloisa Buarque de Hollanda, no fim dos anos 1990, Eucanaã Ferraz ficou
conhecido pela revalorização da forma poética que os poetas marginais
tinham trocado pela ideologia do desbunde e pelo espontaneísmo. O
cuidado de Ferraz com o verso é acentuado desde "Martelo", de 1997,
tornando-se perceptível principalmente pelo uso engenhoso dos
"enjambements", ou cavalgamentos, que são os cortes ao fim dos versos.
Isso não basta, porém, para explicar os diferenciais e a qualidade da
sua obra. Em retrospecto, a travessia do poeta pode ser vista como uma
busca por formas sempre renovadas de dizer o mundo, sem estacar numa
opção confortável ou em fórmulas bem-sucedidas. De um livro a outro, o
que se nota é o enfrentamento com a tradição, a disposição ao erro e aos
inevitáveis enganos de quem se reconhece lançado à transitividade das
coisas e das palavras.
"Sentimental", que acaba de receber o Prêmio Portugal Telecom de
Literatura, é a prova de que o autor se expõe ao abismo da língua sem
cair no desespero. E mostra que é possível fazer um livro quase todo
sobre a loucura, a solidão e a falta de sentido do mundo sem levantar a
voz com arrogância sapiencial, sem desqualificar a diversidade da
poesia, jogando igualmente com a prosa e com o lirismo.
Um dos poemas mais marcantes da recolha é "Sob a Luz Feroz do Teu
Rosto", que aborda a distância escavada entre o ser amante e o ser
amado; pois o amor transforma o outro em leão, em fera, e
"à visão de
nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce
(...)".
E é por isso que:
"Amar um leão não se devia,
agora que já não
somos divinos,
quando a flauta que tudo
encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania;
amar um leão é só
distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em
torno dele (...)".
O amor de que fala Eucanaã Ferraz não está banhado na sopa açucarada
do "lirismo namorador" (o sintagma é bandeiriano), mas não nega a
possibilidade do sublime ou a descoberta da beleza que habita a nossa
condição trágica. Sem dúvida há uma violência implícita no amor, que,
como disse Baudelaire em "Meu Coração Desnudado", é uma forma de
tortura. Aliás, a própria linguagem pode ser também uma espécie de
coração pedregoso.
A grande poeta polonesa Wislawa Szymborska uma vez escreveu: "Não
tenho porta - diz a pedra". Por isso, no poema "Sou eu, me deixa
entrar", de Ferraz, vemos a própria Wislawa cochilando, exausta, com a
cabeça recostada numa pedra. Só que dessa vez a pedra está se abrindo
para ela e (em sonho) a convida a entrar, pois assaltou "as chaves com
que os minerais se trancam". Mesmo assim, a pedra não se abre sem
dificuldade, "porque não há desabrochar suave, em pétalas, quando/ se
ignora totalmente a primavera e tudo o que se sabe,/ não podes imaginar,
é o cavo escuro do chão".
Não há formalismo tacanho, tampouco uma leveza distendida ou beleza
ornamental. Sua delicadeza está mais próxima da que nos fala Roland
Barthes, no livro "O Neutro". Ali, o princípio de delicadeza é uma forma
de perversão da linguagem, de paixão pela diferença ("neuter": nem um
nem outro), que no caso de "Sentimental" se manifesta entre o verso e a
prosa, a fábula e a alegoria, a simetria e a desordem, a partir de uma
leitura revigorante da poesia moderna.
E se Cabral, Bandeira e Drummond são sempre citados, é importante
frisar que a influência dos poetas portugueses sobre Eucanaã Ferraz é
igualmente marcante. Indo ao encontro da ternura de Sophia de Mello
Breyner Andresen e Eugénio de Andrade - ambos de uma beleza sem fim e ao
mesmo tempo de uma lucidez inegavelmente trágica -, os poemas de Ferraz
se enriquecem de uma volta ao outro lado do Atlântico. Em "Turístico de
Lisboa", um de seus poemas mais narrativos, fica evidente a autoironia
do poeta na relação precária dos brasileiros com os lusos: "Lisboa,
diferentemente de Paris, é cidade dos amores/ desfeitos, sítio de
desencontros, é o que diz a rapariga/ ao seu amigo que eu não posso ver
assim de costas/ numa mesa d'A Brasileira. Os brasileiros parecem estar
sempre de costas para os portugueses".
O poema mais impressionante do livro, que por si só já mereceria uma
comemoração, se chama "El Labirinto de la Soledad". O título é em
espanhol porque foi tomado emprestado de um livro homônimo do mexicano
Octavio Paz, um dos personagens com quem Yuri Gagarin (o "protagonista"
do poema) se encontra ao voltar de sua viagem à Lua. Nesse poema
entendemos a familiaridade da palavra sentimental com a loucura - ou uma
espécie particular de "ternura devastadora".
O astronauta retorna do espaço arrebatado ao ponto de não distinguir
mais entre as coisas e as palavras e por isso se expressa apenas por
tautologias:
"Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via
que a água era transparente
e dizia a água é transparente (...)".
Ninguém sabia se ele estava apenas sendo óbvio, tolo, ou se havia se
convertido num "idiota/ que se comovia mais que o esperado". Foi então
que os "vizinhos e cunhados decretaram:/ o homem estava doido; mas sua
mulher assegurava/ que ele apenas voltara sentimental".
É como se Yuri tivesse conhecido o silêncio da pedra sonhada por
Wislawa Szymborska, mas fosse incapaz de dizê-lo. O homem perde todo o
senso pragmático e se volta não à transcendência, mas à beleza das
coisas efêmeras: "O astronauta/ lacrimoso sentia o peito tangido de amor
total/ ao ver as filhas brincando de passar anel/ e de melancolia ao
deparar com antigas fotos/ de Klushino (...)". Podemos presumir que esse
homem não era um cidadão exemplar na União Soviética, nos tempos da
Guerra Fria:
"(...) um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em
relatório oficial que
Yuri Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era
exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um
pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas.
(...)".
Com ironia fina, são postas em jogo tanto as imposturas e a
hipocrisia do amor tipicamente burguês quanto a inaptidão para o amor
dos burocratas comunistas. O senso pragmático de ambos faz que se tornem
impermeáveis demais à loucura, à piração necessária ao amor, quando um
indivíduo volta sentimental de um encontro com o sublime.
"Sentimental" é um livro muito rico e cheio de possibilidades de
leitura. É merecido o reconhecimento do prêmio, que reivindica também
uma atenção ainda mais generosa dos leitores de poesia e da crítica
especializada. Eucanaã Ferraz é um autor delicado. Mas a delicadeza da
sua poesia quase nunca é decorativa ou preciosista, apesar do polimento
cuidadoso que ele dá às palavras; ao contrário, é um exercício sutil e
constante de trapaça, movido por um desejo de burlar a rigidez dos
dogmatismos literários. Sem recorrer a uma linguagem escandalosa,
catastrófica, Ferraz acessa a violência do mundo. Por isso, a leitura de
"Sentimental" é uma boa porta de entrada aos que desejam conhecer
melhor o seu trabalho. E uma prova de que a poesia contemporânea está
oxigenada, mesmo quando a asfixia do nosso tempo parece a única coisa a
dizer.
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* Marcelo Reis de Mello é poeta, editor do selo literário
Cozinha Experimental e membro da Oficina Experimental de Poesia. Sua
dissertação de mestrado na UFF é sobre o conceito de delicadeza e a obra
poética de Eucanaã Ferraz
FONTE: Valor Econômico online, 27/12/2013
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