Desde que se tornou mais abrangente, com homenagens à produção
literária de países do mundo todo e não só de latino-americanos, a Feira
Internacional do Livro de Guadalajara, no México, tem buscado criar
pontes com literaturas eminentes, próximas ou distantes do universo
hispânico. Na 27ª edição, encerrada no domingo, a honra recaiu sobre
Israel, nação ao mesmo tempo jovem e ancestral, representada no evento
por grandes escritores, como David Grossman, autor de "Fora do Tempo"
(Companhia das Letras). O autor de romances, ensaios e livros infantis
conversou com o Valor sobre literatura israelense e o desafio de promover a paz por meio da ficção, tratando de "ver com os olhos do outro".
Valor: Para onde o futuro da literatura israelense aponta?
David Grossman: É difícil prever o futuro do
próprio país, que dirá da literatura israelense. Mas hoje convivem seis
gerações de escritores na nossa arena literária, todas bastante ativas.
Há muitos jovens escrevendo, talvez mais interessados em olhar para o
resto do mundo e lançar-se nele do que as gerações anteriores. A minha,
por exemplo, prefere lidar com a realidade imediata. A meu ver, nossa
situação extrema gera muitas manifestações artísticas. Não é só a
literatura que pulsa em Israel, mas também o teatro e o cinema. Retratar
essa realidade é algo maravilhoso, viver nela não é.
Valor: O que caracteriza essa situação?
Grossman: Sem dúvida, é o esforço de manter uma
nação. Israel é historicamente o lugar de origem dos judeus. Fomos
expulsos daí no primeiro século depois de Cristo e, desde então, em todo
o mundo é possível encontrar judeus. Cada um continua a desejar que
esse lugar continue existindo. E não só isso: para os judeus, aspirar a
voltar a essa terra é parte básica de sua identidade. Então, a partir do
fim do século XIX, os sionistas passaram a atuar com o objetivo de
devolver essas pessoas à sua origem e criar um país. São quase 1.800
anos durante os quais fomos perseguidos e assassinados. O objetivo de
criar um Estado israelense é que ele sirva de lugar para proteger os
judeus, depois que o mundo falhou nisso. Essa ideia me parece não só
inspiradora, mas nobre e necessária. O fato é que, assim como fomos
expulsos, outros povos começaram a criar sua vida nessa área, e o
movimento sionista ignorou isso. Nos tempos atuais, existem dois povos
ocupando a mesma terra, e é claro que ninguém sugere que um deles vá
embora. Buscamos uma situação política que nos permita levar uma vida
normal.
Valor: Qual é sua visão sobre a posição israelense, como escritor e cidadão?
Grossman: Não busco a justiça total, só as pessoas
fanáticas o fazem. Uma solução absoluta significaria que um dos dois
povos deixasse de viver na região, e pedir isso é impossível. O que é
possível é uma justiça que será dolorosa para ambos os lados. Estamos
vivendo uma vida paralela àquela que merecemos. Busco uma saída de
tamanho humano, e o principal obstáculo a superar é o medo. Estamos
traumatizados por tantas guerras. Se você analisar estatísticas
relacionadas ao Oriente Médio, fica clara a tensão. São cerca de 60
milhões de judeus vivendo ao lado de 300 milhões de muçulmanos que não
querem que estejamos aí e nos dizem isso abertamente. Dá para imaginar o
que eles fariam conosco se tivessem chance. Acredito que Israel tem que
poder se defender e ter um exército forte, mas isso não é suficiente. É
só um lado dessa defesa; o outro é a paz. Precisamos lutar para
consegui-la em ambas as sociedades, a israelense e a palestina, depois
na Jordânia e em outros países envolvidos, porque a vida só será
possível se existir paz. Hoje, investe-se muito na guerra. Há poucos
agentes de diálogo. É preciso criá-los, porque, do contrário,
continuaremos paralisados.
Valor: Nesse cenário de paralisia, de que maneira a literatura é capaz de estabelecer pontes entre Israel e a Palestina?
Grossman: Creio que, em situações de congelamento,
de restrição das liberdades, as pessoas ficam presas, e a arte é que
cria espaço de manobra e permite que elas sejam flexíveis e se
reinventem. O bom de escrever, para mim, é tentar ver a realidade com os
olhos do outro. Nem sempre temos energia para abandonar nossas posições
e experimentar outros pontos de vista. Quando escrevo com os olhos do
meu inimigo - e, infelizmente, neste momento israelenses e palestinos
são inimigos -, sinto que por um momento consigo o privilégio de olhar
para mim de outra maneira. É sempre o inimigo que enxerga coisas que
preferimos não saber de nós e experimenta nossa brutalidade. Só quando
você se olha através dos olhos dele é que percebe quem é.
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Reportagem Por Camila Moraes | De Guadalajara
Fonte: Valor Econômico online, 13/12/2013
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