Flávio Ricardo Vassoler*
Uday Saddam Hussein tinha um sósia. O Dublê do Diabo, filme de
Lee Tamahori. Ele substituía o primogênito de Saddam em discursos,
cerimônias - e atentados.
“O poder tende a corromper, e o
poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são
quase sempre homens maus”. A conhecida máxima do historiador britânico
John Acton (1834-1902) acompanha as cortes e camarilhas desde Nero e
Calígula até chegarmos a Uday Saddam Hussein, o primogênito do Iraque,
também conhecido como o Dublê do diabo (2012), filme dirigido por Lee Tamahori.
Acton emprega o verbo corromper
como deturpação primordial do poder. De fato, poderíamos perguntar por
que o poder se torna erógeno. Que as cortes e camarilhas se tornem
haréns é um fato tão decantado quanto a máxima de Acton. Mas em que a
perversão sexual corroboraria a heteronomia de todos em função do líder?
Consta
que Lavrentiy Beria (1899-1953), o braço direito de Stálin à frente do
temível NKVD, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos, circulava a
esmo por Moscou em seu carro oficial. Quando uma moscovita lhe apetecia
– e as bailarinas do Bolshói forneciam vasto material às aulas de
anatomia do arquiteto dos expurgos stalinistas –, a moça logo era
coagida pelos eunucos de Beria a entrar no carro. Consta também que
Beria, ao longo dos anos, foi acumulando uma vasta coleção de lingeries –
e de filhos bastardos. Ora, por que o poder irrestrito sobre os demais
levaria à erotização do trono?
Que
os tabus em relação ao sexo e à sexualidade sejam fortemente
consuetudinários bem o demonstra o clero católico – quem conhece a
história da família Bórgia ou já percorreu os bastidores das sacristias
narrados pelo Decamerão, de Giovanni Boccaccio (1313-1375), sabe
que o véu que separa os eclesiásticos dos fiéis não serve apenas para
reiterar o mistério divino, mas também para escamotear os segredos
mundanos. (Para aguçar a curiosidade, para alimentar o apetite das
práticas que apenas podem ser exercidas sob a penumbra, aos soslaios,
com o tempo contado e o desejo castrado.)
Caro
leitor, cara leitora, imaginem a inércia das águas de uma represa que
só fazem colidir contra as barragens que não lhes dão livre curso. Uma
ínfima fissura na estrutura de contenção já prenuncia a explosão das
águas em catarata. O poder não apenas pisa sobre o Decálogo de Moisés.
As cortes e as camarilhas são a contrapartida catártica da população
castrada. Os súditos tornam-se cúmplices do sadismo do poder. (De seu
sadomasoquismo.) Ninguém pode exercer impunemente a liberdade negativa
de um Beria. Se o fizer, logo será posto em uma masmorra úmida – e Beria
será o juiz que lhe apontará o dedo. A liberdade dos cortesãos
pressupõe a privação de todos os demais. Não à toa os súditos tanto
apreciam as fofocas sobre o poder – elas sussurram tudo aquilo que não
podemos fazer, tudo aquilo que não nos é permitido vivenciar. Mas a
castração historicamente reproduzida deixa sequelas. Eu não vou aceitar
minha privação se não puder ejaculá-la contra o outro – o nômade, o
apátrida, o estrangeiro. O arquétipo do judeu. É assim que o Führer se
transforma na somatória dos desejos castrados – os pescoços metálicos de
seus tanques bem mimetizam os falos dos soldados que mal puderam
ejacular, mas que agora chegam ao êxtase com a eliminação dos corpos dos
outros, corpos como os deles, meros soldados, que também morrerão. O
poder libidinal gera uma multidão de cúmplices – e cadáveres. Não à toa o
francês chega ao orgasmo por meio da petite mort – a pequena morte não
mimetiza apenas o êxtase orgástico, o desfalecimento que sorri e faz o
coração martelar o esterno, mas pressupõe a castração do poder, a
mutilação de Narciso.
Uday
Saddam Hussein tinha um sósia. O dublê do diabo. Latif Yahia substituía
o primogênito de Saddam em discursos, cerimônias – e atentados. Com a
duplicação de Uday Saddam Hussein narrada pelo diretor Lee Tamahori,
podemos apreender o que acontece a Narciso quando ele se depara com um
irmão gêmeo para além de sua imagem refletida sobre as águas plácidas de
um lago. Uday ama a réplica de si mesmo, seu eu-outro, Latif tem acesso
a tudo o que pertence a Uday – sobretudo a seu harém –, mas logo o amor
deformado pelo poder mostra sua faceta. Uday é todo poderoso, mas é
finito; Uday é todo poderoso, mas o poder, que lança mão de seus líderes
carismáticos para se (re)produzir, não necessariamente precisa de Uday
Saddam Hussein. É bem verdade que o inglês Thomas Hobbes (1588-1679)
sentenciou que não pode haver vácuo no poder. Mas curiosa e
contraditoriamente, tal vácuo não pressupõe este, esse ou aquele títere
do poder. A máscara do poder está à espera daquele que conseguir
vesti-la – contingencialmente, temerariamente, temporariamente. O
narcisismo do poder pressupõe o ódio do déspota por si mesmo – Uday sabe
que, amanhã, já não será o filho de Saddam Hussein. Não à toa Luís XIV,
o Rei Sol, eternizou a dialética de Narciso. Se l’État, c’est moi, se o Estado sou eu, après moi le déluge, depois de mim, o dilúvio.
Se Luís XIV não será Luís XXIV, as intermitências do poder desvelam o
cordão umbilical que liga Narciso à autoflagelação. Nem mesmo o mausoléu
do déspota deve ser preservado. Narciso gosta de se mutilar. Afinal, o
morto não se torna mais um súdito?
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*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito,
um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com
o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses –
para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Fonte: Carta Maior online, 10/12/2013
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