ROBERTO DAMATTA*
Eu sinto falta das minhas infantis ansiedades natalinas.
A gente ouvia: "amanhã é dia de Natal". E todos pensávamos no que íamos
"pedir" a Papai Noel. Foi no Natal que primeiro exercitei o desejo
aberto que singulariza e transporta ao sublime e à vergonha - quase
sempre aos dois. Por causa disso, todo pedir é sempre atropelado pela
insegurança. O que podemos pedir - eis a pergunta não dita - a quem
realmente "dava" os tão esperados "presente de Natal" nas famílias de
classe média que viviam dentro de orçamento apertado, como sempre foi o
meu caso?
Se Papai Noel não existia, pois era o nosso próprio pai, como saber o
presente possível? Todos nós (éramos cinco meninos e uma menina)
sabíamos que o tal "saco de Papai Noel" era enorme e como Papai Noel era
gordo e muito rico. Tão rico quanto os Estados Unidos que o haviam
reinventado para a minha geração dos anos 30 e 40. Mas sabíamos também
que o seu lugar era um lugar fora do nosso alcance. Como escrever uma
carta num inglês que nos era desconhecido e remetê-la para o Polo Norte
se correio não era lá essas coisas?
Eu que, felizmente, tive um pai até ser pai, sabia que papai estava
ao meu alcance. Mas o tal Papai Noel levantava uma paternidade
estacional. Ele só aparecia no final do ano e, a seu lado, surgiam
também as figuras santificadas e concretas do Menino Jesus, de São José e
da Virgem Mãe. Um amigo dizia que era preciso escolher entre gastar
movido pela "propaganda" ou rezar num verdadeiro e escrupuloso Natal. Eu
até hoje fico impressionado com a fácil moralidade de plantão.
A Sagrada Família era pobre mas Papai Noel tinha um trenó puxado por
renas - estranhos veados grandes que, além do mais, voavam. Ademais, ele
entrava nas casas pela chaminé. Eis um detalhe que completava o seu
exotismo, porque as casas onde morávamos não tinham chaminé - tinham
cafuas e porões. À ansiedade dos presentes, sempre aquém do meu desejo,
havia a dúvida porque, afinal, éramos "crianças" e Papai Noel pertencia
ao universo dos "grandes". E os adultos sabiam de coisas secretas, como a
tal cegonha que, no meu caso, durante sete ou oito anos, trouxe,
embrulhado numa fralda, um irmãozinho que me roubava carinho, atenção e
espaço...
Camelos, cegonhas e chaminés eram elementos que compunham o mistério dessas figuras periódicas.
Ao escrever essas recordações natalinas, descubro porque, quando
visitei o Cairo, Egito, para tomar parte numa ambiciosa conferência de
antropologistas, usei a oportunidade para observar os camelos. Diante
das pirâmides, eu olhava e perguntava sobre os camelos. Tocava-os,
admirava sua capacidade de resistir a sede e tinha curiosidade sobre
suas corcovas. Camelo ou dromedário? Uma ou duas corcundas? Eis uma
pergunta que não quer calar diante de certas pessoas, sobretudo dos que
me governam. E foi assim que, diante da velha Esfinge, eu edipiana e
estupidamente paguei para dar uma volta num velho camelo e, mais que
isso, tirei uma fotografia. O guia ria e repetia "Lawrence da Arábia",
mas eu estava vivendo um dos reis Magos...
Do mesmo modo e pela mesma lógica, essa também ligada ao meu amigo e
companheiro de toda a vida, um rapaz chamado Édipo, jamais perdi a
fascinação pelas chaminés que estudei, medi, admirei e olhei com
fascinação nas casas europeias e américas. O fogo dentro de casa era uma
contradição na minha vida de brasileiro cuja família vinha de uma
Manaus, de uma Salvador e de uma Niterói nas quais o calor era "de
matar" e o risco de algo "pegar fogo" era constante. Como, pois, ter
essas chaminés com um fogo caseiro que servia para aquecer, quando só
falávamos em ventilação e sonhávamos com o hoje rotineiro e
transformador "ar condicionado"?
Papai Noel descia ou entrava pela lareira e eu jamais deixei de
espiar escondido para o interior tenebroso das lareiras americanas. E se
o bom velhinho fosse o amante da dona da casa, como questionou meu
ciumento pai diante da estupefação de seus irmãos e cunhados? Mais que
isso, como descer pela chaminé sem se sujar, conforme estabelece uma
famosa e intrigante parábola judaica?
O fato antropológico, porém, é que o fogo da lareira contrasta
somente em parte com o da cozinha. Os dois se fundem. E produzem uma
fumaça humana reveladora de vida. Pois a fumaça que tinge os céus já
escuros e frios dos invernos gelados que hoje eu conheço tão bem, seja
no norte ou no sul, é o triunfo do calor que resiste ao frio imutável do
infinito. Parece com o fósforo lutando inutilmente com o quarto escuro
no qual vivemos.
E assim é o Natal. Uma noite de luz na imensa escuridão de nossas
vidas. Uma pausa para reconhecer nos próximos o seu amor e a sua
paciência para conosco. As rotinas realçam mais o feio e o raso do que o
belo e o profundo. Mas o Natal dos "amigos ocultos" e das trocas de
presentes redime o outro que está em todos os nossos próximos e, quem
sabe, dentro de cada um de nós.
Feliz Natal!
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão online, 25/12/2013
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