Paulo Ghiraldelli*
Os filósofos do pluralismo oficial da Folha de São Paulo, Pondé e Safatle, escreveram artigos curiosos essa semana. (início no dia 08/12)
Pondé fez uma denúncia correta a
respeito das dificuldades do pequeno empresário no Brasil. Abrir uma
pequena empresa entre nós é praticamente abrir aquilo que sabemos que
vai fechar mais cedo do que imaginamos. As dificuldades que, há anos, os
partidos prometem eliminar continuam vigentes. Pequeno empresário é, no
Brasil, um candidato forte a se tornar um grande fracassado.
Todavia, o modo como Pondé escreve,
quando fala do setor social que sua doutrina política defende, às vezes
soa chorosa demais. Quem não sabe de quem ele está falando, pode até
imaginar que seu lamento não diz respeito a pessoas com dinheiro para
abrir uma empresa, mas pessoas que possuem dinheiro apenas para meio
cachorro quente na Vinte e Cinco de Março – e sem direito de ver o
Félix.
Mas, do outro lado do rio ideológico, as coisas se complicam mais.
Safatle escolhe como tema a pesquisa da Folha,
publicada domingo, que, entre outras coisas, diz que a população nossa é
simpática ao braço do estado um pouco avantajado quanto à economia, mas
é “de direita” quanto a costumes. Safatle comemora, uma vez que isso
garante que a esquerda que está no poder continue no poder. Reclama
injustamente que essa esquerda não tem voz na “esfera pública”. Mas, a
parte mais criticável do seu texto é o seu final. Eu cito:
- Na verdade, o povo brasileiro sabe muito bem a importância da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da tributação dos mais ricos, assim como é cônscio da importância do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado e da defesa do bem comum. Só quem não sabe disso são nossos analistas econômicos, com suas consultorias milionárias pagas pelo sistema financeiro. (Folha de S. Paulo)
Há nesse trecho tudo o que não gosto em um ensaísta.
Primeiro, o autor dizendo “o povo”.
Segundo, o autor dizendo que ele sabe o que esse “o povo” sabe.
Terceiro, ele dizendo que o tal “povo” é aquele que “sabe bem”. Quarto,
ele afirmando algo que é uma obrigação na esquerda: dizer verdades que
encerram o debate. E ele fala mesmo: “o povo” (…) sabe “da importância
da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da
tributação dos mais ricos”, assim “o povo” também “é cônscio da
importância da intervenção do Estado e da defesa do bem comum”.
Nem dá vontade de comentar o resto. Só
essas frases já são o suficiente para eu dizer para um jovem leitor:
mesmo que você tenha essa convicção ideológica de Safatle, nunca escreva
isso que ele escreveu. Não porque é brega, como gosta de dizer Pondé
até com certa razão, mas porque é uma maneira que Caetano Veloso diria
que é “meio burra”. Não estou ofendendo Safatle não. O que estou dizendo
é que esse modo de escrever não provoca a inteligência do leitor, não
dá alternativas para pensar, mas fecha a questão com um final taxativo e
falso.
Por que falso? Ora, não vou me prender
aqui ao som patético de “o povo” ou “povo sabe bem”. Isso todo mundo
diria, ou melhor, todo mundo diz. Todos nós já cansamos de ouvir
intelectual de esquerda dizendo o que o tal povo pensa, sabe, quer e
janta. Não! Quero por em questão aqui o caso da “solidariedade”. Ou
seja, o texto termina fincando pé em algo mais ou menos como
“solidariedade é isso” e pronto. Não é! Ou ao menos: não é só isso.
Podemos encontrar solidariedade nessa
forma. Ou seja, posso admitir que existe aquele brasileiro que é
solidário ao outro brasileiro pagando seus impostos. Nem preciso aí
querer que tal solidariedade seja subjetiva, que o brasileiro pague seus
impostos pensando no outro. Não, entendo perfeitamente que o imposto
pago pode significar a produção de uma solidariedade objetiva, à medida
que a finalidade da arrecadação é a devolução do dinheiro para o cidadão
na forma de serviços públicos, coletivos e sociais de boa qualidade.
Todavia, isso não pode ser a única maneira de qualificar o que é a
solidariedade na vida social moderna.
É por isso que, em outros artigos (1),
fiz questão de lançar mão de uma proposta de cunho diferente das da
social-democracia. E fiz questão, também, de trazer à baila algo
diferente da oposição de Nozick aos liberais de tipo Rawls ou social
democratas. Foi por isso que coloquei na mesa a ideia de Peter
Sloterdijk. Como expliquei nos artigos anteriores, Sloterdijk não vê
nenhuma solidariedade produzida por algo chamado “imposto”, mas, mais
apropriadamente, por algo chamado donativo voluntário. Ele denominou
isso, como expliquei, de um melhor equilíbrio entre energias timóticas e
energias eróticas. Ora, faz sentido o que Sloterdijk diz?
Podemos discordar de Sloterdijk quanto à
praticidade de sua proposta, uma vez que estamos todos, inclusive os
liberais conservadores, acostumadíssimos a pagar impostos e ver o estado
fazer tudo, e isso tanto no Brasil quanto na Alemanha. Todavia, não
podemos discordar de Sloterdijk se imaginamos o que ele fala quanto à
mudança da fonte energética, do campo erótico para o campo timótico, de
modo a fazer com que possamos gerar um grupo grande, talvez uma boa
classe média com dinheiro, que quer ter o orgulho de ser a guardiã da
nação (no sentido do soldado de Calilópolis, que põe sua ira timótica em
favor da cidade) por meio de generosa contribuição voluntária ao invés
do imposto.
Mas, no caso da proposta de Sloterdijk,
seria errado falarmos que ele está em um campo teórico rarefeito e,
então, no âmbito de uma utopia sem qualquer âncora. Conhecemos a face
comunitarista americana, que sempre esteve presente nos Estados Unidos
de modo a se contrapor à face liberal do mesmo país. Não entender que os
Estados Unidos também vive de doações na construção de suas mais
belas instituições seria tolice. Fazer como Zizek, que diz que os ricos
só fazem doações após ganharem dinheiro por meio de explorações de todo
tipo seria desviar o assunto e, de certo modo, não reconhecer o centro
da proposta de Sloterdijk, que não necessariamente se restringe aos
grandes capitalistas, e menos ainda quer abolir do dia para a noite os
impostos.
O que digo é que, quando se trata de
produzir solidariedade em uma sociedade, o pior que temos a fazer é
dizer que ela só pode vir materializada na forma de impostos pagos ao
estado. Dizer isso não é só proteger um dogma da esquerda. Dizer isso é
proteger o cérebro, de modo que ele não possa ser atingido por
pensamentos que possam implicar em criatividade, independentemente de
esquerda ou direita. E é nesse sentido que o texto de Safatle não ajuda
muito.
É difícil fazer a esquerda e a direita
pensarem. Eles possuem muitas verdades. Ninguém pensa certo tendo muitas
mentiras, mas não se chega sequer a ter pensamento quando se tem muitas
verdades. Prefiro achar que em matéria de filosofia política deveríamos
ser mais pragmáticos, mais experimentalistas, mais generosos quanto ao
que podemos criar de diferente.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Site do autor: http://ghiraldelli.pro.br
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