quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Há mais formas de se conseguir solidariedade do que Safatle imagina

Paulo Ghiraldelli*
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Os filósofos do pluralismo oficial da Folha de São Paulo, Pondé e Safatle, escreveram artigos curiosos essa semana. (início no dia 08/12)
Pondé fez uma denúncia correta a respeito das dificuldades do pequeno empresário no Brasil. Abrir uma pequena empresa entre nós é praticamente abrir aquilo que sabemos que vai fechar mais cedo do que imaginamos. As dificuldades que, há anos, os partidos prometem eliminar continuam vigentes. Pequeno empresário é, no Brasil, um candidato forte a se tornar um grande fracassado.

Todavia, o modo como Pondé escreve, quando fala do setor social que sua doutrina política defende, às vezes soa chorosa demais. Quem não sabe de quem ele está falando, pode até imaginar que seu lamento não diz respeito a pessoas com dinheiro para abrir uma empresa, mas pessoas que possuem dinheiro apenas para meio cachorro quente na Vinte e Cinco de Março – e sem direito de ver o Félix.
Mas, do outro lado do rio ideológico, as coisas se complicam mais.

Safatle escolhe como tema a pesquisa da Folha, publicada domingo, que, entre outras coisas, diz que a população nossa é simpática ao braço do estado um pouco avantajado quanto à economia, mas é “de direita” quanto a costumes. Safatle comemora, uma vez que isso garante que a esquerda que está no poder continue no poder. Reclama injustamente que essa esquerda não tem voz na “esfera pública”. Mas, a parte mais criticável do seu texto é o seu final. Eu cito:
  • Na verdade, o povo brasileiro sabe muito bem a importância da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da tributação dos mais ricos, assim como é cônscio da importância do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado e da defesa do bem comum. Só quem não sabe disso são nossos analistas econômicos, com suas consultorias milionárias pagas pelo sistema financeiro. (Folha de S. Paulo)
Há nesse trecho tudo o que não gosto em um ensaísta.

Primeiro, o autor dizendo “o povo”. Segundo, o autor dizendo que ele sabe o que esse “o povo” sabe. Terceiro, ele dizendo que o tal “povo” é aquele que “sabe bem”. Quarto, ele afirmando algo que é uma obrigação na esquerda: dizer verdades que encerram o debate. E ele fala mesmo: “o povo” (…) sabe “da importância da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da tributação dos mais ricos”, assim “o povo” também “é cônscio da importância da intervenção do Estado e da defesa do bem comum”.

Nem dá vontade de comentar o resto. Só essas frases já são o suficiente para eu dizer para um jovem leitor: mesmo que você tenha essa convicção ideológica de Safatle, nunca escreva isso que ele escreveu. Não porque é brega, como gosta de dizer Pondé até com certa razão, mas porque é uma maneira que Caetano Veloso diria que é “meio burra”. Não estou ofendendo Safatle não. O que estou dizendo é que esse modo de escrever não provoca a inteligência do leitor, não dá alternativas para pensar, mas fecha a questão com um final taxativo e falso.

Por que falso? Ora, não vou me prender aqui ao som patético de “o povo” ou “povo sabe bem”. Isso todo mundo diria, ou melhor, todo mundo diz. Todos nós já cansamos de ouvir intelectual de esquerda dizendo o que o tal povo pensa, sabe, quer e janta. Não! Quero por em questão aqui o caso da “solidariedade”. Ou seja, o texto termina fincando pé em algo mais ou menos como “solidariedade é isso” e pronto. Não é! Ou ao menos: não é só isso.

Podemos encontrar solidariedade nessa forma. Ou seja, posso admitir que existe aquele brasileiro que é solidário ao outro brasileiro pagando seus impostos. Nem preciso aí querer que tal solidariedade seja subjetiva, que o brasileiro pague seus impostos pensando no outro. Não, entendo perfeitamente que o imposto pago pode significar a produção de uma solidariedade objetiva, à medida que a finalidade da arrecadação é a devolução do dinheiro para o cidadão na forma de serviços públicos, coletivos e sociais de boa qualidade. Todavia, isso não pode ser a única maneira de qualificar o que é a solidariedade na vida social moderna.

É por isso que, em outros artigos (1), fiz questão de lançar mão de uma proposta de cunho diferente das da social-democracia. E fiz questão, também, de trazer à baila algo diferente da oposição de Nozick aos liberais de tipo Rawls ou social democratas. Foi por isso que coloquei na mesa a ideia de Peter Sloterdijk. Como expliquei nos artigos anteriores, Sloterdijk não vê nenhuma solidariedade produzida por algo chamado “imposto”, mas, mais apropriadamente, por algo chamado donativo voluntário. Ele denominou isso, como expliquei, de um melhor equilíbrio entre energias timóticas e energias eróticas. Ora, faz sentido o que Sloterdijk diz?

Podemos discordar de Sloterdijk quanto à praticidade de sua proposta, uma vez que estamos todos, inclusive os liberais conservadores, acostumadíssimos a pagar impostos e ver o estado fazer tudo, e isso tanto no Brasil quanto na Alemanha. Todavia, não podemos discordar de Sloterdijk se imaginamos o que ele fala quanto à mudança da fonte energética, do campo erótico para o campo timótico, de modo a fazer com que possamos gerar um grupo grande, talvez uma boa classe média com dinheiro, que quer ter o orgulho de ser a guardiã da nação (no sentido do soldado de Calilópolis, que põe sua ira timótica em favor da cidade) por meio de generosa contribuição voluntária ao invés do imposto.

Mas, no caso da proposta de Sloterdijk, seria errado falarmos que ele está em um campo teórico rarefeito e, então, no âmbito de uma utopia sem qualquer âncora. Conhecemos a face comunitarista americana, que sempre esteve presente nos Estados Unidos de modo a se contrapor à face liberal do mesmo país. Não entender que os Estados Unidos também vive de doações na construção de suas mais belas instituições seria tolice. Fazer como Zizek, que diz que os ricos só fazem doações após ganharem dinheiro por meio de explorações de todo tipo seria desviar o assunto e, de certo modo, não reconhecer o centro da proposta de Sloterdijk, que não necessariamente se restringe aos grandes capitalistas, e menos ainda quer abolir do dia para a noite os impostos.

O que digo é que, quando se trata de produzir solidariedade em uma sociedade, o pior que temos a fazer é dizer que ela só pode vir materializada na forma de impostos pagos ao estado. Dizer isso não é só proteger um dogma da esquerda. Dizer isso é proteger o cérebro, de modo que ele não possa ser atingido por pensamentos que possam implicar em criatividade, independentemente de esquerda ou direita. E é nesse sentido que o texto de Safatle não ajuda muito.

É difícil fazer a esquerda e a direita pensarem. Eles possuem muitas verdades. Ninguém pensa certo tendo muitas mentiras, mas não se chega sequer a ter pensamento quando se tem muitas verdades. Prefiro achar que em matéria de filosofia política deveríamos ser mais pragmáticos, mais experimentalistas, mais generosos quanto ao que podemos criar de diferente.
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 * Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Site do autor: http://ghiraldelli.pro.br

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