Juliana de Faria*
"A verdade é que não é nada difícil diferenciar um do outro.
Elogio demonstra respeito, assédio constrange e humilha. Faça o teste:
você repetiria o xaveco com sua chefe? Se suspeita que ela pode não
gostar e até o demitir, por que fazê-lo com uma estranha na rua? Talvez
seja só porque alguns homens sentem que, em locais públicos, têm poder
para fazer
o que quiserem com as mulheres."
Uma pesquisa britânica mostrou no mês passado que, se você apresentar
para o público frases de uma revista masculina e depoimentos de
estupradores, ninguém consegue perceber a diferença. Agora, ganhamos
mais um exemplo dessa afinidade. Uma revista brasileira voltada para
homens lançou uma campanha publicitária chamada Manifesto pelo Homem
Livre, baseada em pesquisa de agência que encontrou uma tal
"masculinidade sufocada" entre eles. Nunca explicou direito o que é que
está, de fato, sufocando os pobres coitados, mas já inspirou bandeiras
como "sim, adoramos ver uma bela bunda passar" e "como casamento dá
trabalho, deveríamos receber um mês de férias por ano".
É uma tentativa grosseira de gerar barulho por meio da indignação dos leitores (e, principalmente, leitoras). Na internet, deu-se a isso o nome de "trolada": defender um objetivo ridículo, em que nem você mesmo acredita, com a intenção de se tornar o centro das atenções. Acontece que a campanha gerou mais deboche do que raiva.
É uma tentativa grosseira de gerar barulho por meio da indignação dos leitores (e, principalmente, leitoras). Na internet, deu-se a isso o nome de "trolada": defender um objetivo ridículo, em que nem você mesmo acredita, com a intenção de se tornar o centro das atenções. Acontece que a campanha gerou mais deboche do que raiva.
Apesar de insignificante, é triste ver uma campanha reforçar um
discurso que já gerou tantas tragédias. A afirmação do poder dos homens
sobre as mulheres é o que sustenta o machismo e várias formas de
violência contra elas. Talvez você diga: "Ah, mas é só uma
brincadeira...". Foi exatamente o que eu ouvi quando comecei minha
cruzada contra o assédio sexual em locais públicos, cinco meses atrás.
Em julho, lancei a campanha Chega de Fiu Fiu, pelo site Think Olga.
A ação tem um objetivo: mostrar como assédio humilha e intimida as
mulheres, e exterminar esse comportamento. A luta partiu de uma aflição
pessoal. Sofro assédio nas ruas desde antes de menstruar. A primeira vez
foi aos 11 anos, quando um cara, na rua da minha casa, me disse
palavras que os editores deste jornal não me deixariam reproduzir.
Não é uma história exclusiva minha. Amigas e conhecidas também se
lamentavam, em voz baixa, sobre o problema. A discrição tinha motivo: o
medo de serem taxadas de exageradas, reclamonas e até, veja só, metidas.
O assunto, como costumo dizer, era tratado como um monstro invisível,
sem nenhum dado ou informação que pudessem descrevê-lo.
Em agosto, com a jornalista Karin Hueck, tentei
entender contra o que brigávamos. Publicamos no site um questionário
sobre assédio, elaborado por ela. Em apenas duas semanas, 7.762 mulheres
brasileiras haviam respondido. Entre elas, 83% disseram não gostar do
que são obrigadas a ouvir nas ruas; 81% já deixaram de fazer tarefas
cotidianas por medo de assédio; 90% já trocaram de roupa para evitar
cantadas; 85% delas já sofreram com a tal "mão boba".
Essas mulheres também compartilharam milhares de relatos terríveis.
Iam de agressões verbais até contatos físicos - "um homem se masturbou
ao meu lado", "um cara se aproximou me chamando de linda e encostou no
meu rosto a mão molhada de sêmen", "quatro desconhecidos, ao cruzarem
comigo na rua, tentaram rasgar minhas roupas".
Um dos obstáculos da campanha é a frequente confusão entre agressão e
elogio, e ela foi até acusada de tentar acabar com o flerte. O fato de
alguém não ser capaz de diferenciar assédio sexual de relações
românticas naturais já mostra como o assunto é problemático.
A verdade é que não é nada difícil diferenciar um do outro. Elogio
demonstra respeito, assédio constrange e humilha. Faça o teste: você
repetiria o xaveco com sua chefe? Se suspeita que ela pode não gostar e
até o demitir, por que fazê-lo com uma estranha na rua? Talvez seja só
porque alguns homens sentem que, em locais públicos, têm poder para
fazer o que quiserem com as mulheres. Também disseram que esse é apenas
um traço da tão famosa cordialidade do brasileiro. Quando o historiador
Sérgio Buarque de Holanda usou essa palavra para descrever nosso povo,
ele quis dizer que as relações por aqui "vem do coração", Ou seja, as
pessoas tendem a tratar quem está próximo como se fosse amigo ou membro
da família, e a ignorar o que é público. O que as mulheres sofrem na rua
é o oposto de ser cordial. É, na verdade, o pior traço cultural do
País: ignorar o direito dos cidadãos comuns e não prezar uma vida
pública de respeito e igualdade.
Mas o assédio sexual nas ruas não é um problema exclusivo do Brasil. É mundial. Não à toa, a ONU Mulheres
lançou, em outubro, uma campanha contra ele. No fim do mês passado,
Navi Pillay, alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, alertou
para a violência justificada pelas roupas que as mulheres usam.
"Qualquer tipo de abuso contra mulheres é inaceitável, independentemente
do que estiver vestindo", disse.
Em países em que a igualdade de gênero é mais equilibrada, como Alemanha, Noruega e Suécia, o assédio sexual nas ruas praticamente não existe. Ou seja, isso é uma prova de que as tais cantadas estão intrinsecamente ligadas a uma questão de poder, e não a carinho ou valorização. O cenário, no entanto, está mudando. Pode ser visto no crescimento de vários grupos de combate ao assédio e no engajamento de muitos homens na Chega de Fiu Fiu.
Em países em que a igualdade de gênero é mais equilibrada, como Alemanha, Noruega e Suécia, o assédio sexual nas ruas praticamente não existe. Ou seja, isso é uma prova de que as tais cantadas estão intrinsecamente ligadas a uma questão de poder, e não a carinho ou valorização. O cenário, no entanto, está mudando. Pode ser visto no crescimento de vários grupos de combate ao assédio e no engajamento de muitos homens na Chega de Fiu Fiu.
Ante tantas evidências de que o problema existe e é grave, percebi
que há dois tipos de reação por parte dos homens. Alguns tentam entender
melhor o que está acontecendo e querem conversar com as mulheres para
criar uma relação saudável para ambos os gêneros. Outros apenas trazem
novos exemplos do problema: soltam palavrões (fui chamada de frígida,
mal comida e vagabunda, além de outros piores) e até tentam silenciar o
movimento com violência, como no caso das ameaças de estupro que recebi.
São pessoas que se revoltam em perder o privilégio e, de maneira
raivosa, sentem saudade de quando podiam explorar e humilhar quem eles
quisessem sem dor na consciência. É como se quisessem voltar no tempo.
Mas, como todos sabemos, não existem máquinas do tempo. É inevitável que
esses sejam atropelados pela história.
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*Escreve jornalista e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 15-12-2013.
Fonte: IHU online, 19/12/2013
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