segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A perigosa fantasia do cibertio

Luli Radfahrer*
 
Ele tropeça na etiqueta digital, tuíta em maiúsculas, escreve particularidades em 'timelines' alheias 
Entende-se por "tio" aquele indivíduo que, independentemente de idade, gênero ou parentesco, caracteriza-se pelo descompasso que tem em relação ao ambiente em que vive. 

Há tiozinhos e tiozões, tiazinhas e tiazonas. Em comum, tropeçam os pés publicamente nos tapetes das etiquetas digitais, tuitando em maiúsculas, escrevendo particularidades em timelines' e desafiando regras da gramática em frases de linguagem atribuídas aos mais jovens. 

Há retro-tios, azedos e pessimistas, que se recusam a ver utilidade nos equipamentos digitais. Têm saudades de suas Olivettis, portam lenços nos bolsos externos dos paletós e proclamam que não existe música depois de Miles Davis. Muito se falou deles e de sua teima em questionar o progresso. Deixo-os em paz por estarem em extinção. 

Tão anacrônicos quanto eles estão os cibertios, que adotam a terra do nunca da internet para combater a maturidade. On-line todos são belos, jovens e saudáveis, antenados com o que há de novo. 

A personalidade digital é mais feliz por definição. Por ter se livrado deste fardo mortal, ela está livre para atingir os objetivos mais surreais. Mais assertiva, e corajosa, ela é mais forte e muito sexy. 

O meio ajuda. Invisibilidade, anonimato, ilusão de proximidade e falta de hierarquias ou divisões grupais reforçam as ilusões de um ego sem fronteiras, cada vez mais desconfortável ao lado daquela que sempre foi a única personalidade. 

Experimentos de massa praticamente ilimitados, as redes sociais são a nova fronteira do faroeste digital, encorajando grandes sonhos, comportamentos heroicos e riscos incompatíveis com o mundo real. 

A sensação de se estar à parte das regras convencionais, de se operar em um vácuo econômico, jurídico e ético em busca de novas minas de ouro invalida, em parte, o contrato social ao encorajar desvios de comportamento sem precedentes. 

Delírios de grandeza, invencibilidade, indestrutibilidade, imortalidade, narcisismo, morbidez, impulsividade e psicopatias diversas mostram o lado negro do mundo da fantasia, em que o digital, sem vergonha nem culpa, se mistura ao real. 

À medida que os comportamentos on-line são incorporados ao mundo off-line, as personalidades inevitavelmente se misturam, tornando suas vítimas progressivamente impacientes, impulsivas e insensíveis. Como recém-nascidos. 

As redes sociais se tornaram, para muitos, um espaço de regressão, em que muitas imaturidades e petulâncias inaceitáveis no mundo real se tornam a regra. O mundo virtual virou espaço conveniente para se esquivar das complexidades da vida adulta e voltar à infância. 

No livro "A Sociedade do Espetáculo", Guy Debord mostra como a vida social vem sendo progressivamente substituída por sua representação. Um declínio do "ser" para o "ter", e deste para o mero "aparentar". O espetáculo, segundo ele, não é uma coleção de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens. 

E o espetáculo prejudica a qualidade de vida, a autenticidade, a percepção e o pensamento crítico.
De Facebook a Pinterest, de Twitter a Lulu, o espetáculo nunca para. Seu único objetivo é entreter e ser prontamente esquecido, para a tristeza dos que precisam trabalhar no dia seguinte. 
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* Colunista da Folha
folha@luli.com.br
Fonte: Folha on line, 2/12/2013
imagem da Internet 

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