Paulo Brabo*
A condição humana é um saco de contradições, e a esta altura nada
deveria nos surpreender. Todo mundo quer ser amado, mas estamos sempre
prontos a desconfiar do amor. Pode ser
difícil, como neste caso, aceitar como coisa grande e suficiente o
abraço de quem já encontrou motivo para me amar (falo de você, caro e
impenitente leitor) mas não teve oportunidade de conhecer, no regime
duro da convivência, motivos que me tornariam menos fácil de amar (falo
de você, caro e afortunado leitor).
Saber que somos uma farsa tem a vantagem evidente de não ignorarmos que somos uma farsa. A desvantagem é que somos uma farsa.
Neste caso, e também em outros, me surpreende entender que ser amado pode ser mais difícil do que amar.
Não só isso: sempre que sinto-me tentado a pensar em algumas formas
de amor como mais superficiais do que outras, sou levado a concluir que
superficial é pensar dessa forma.
“Pode alguém que não nos conhece por completo nos amar?” pode parecer
uma pergunta profunda, mas ignora ela mesmo a natureza ambígua e
não-cartesiana de todas as coisas. Faria mais sentido ponderar se alguém
pode de fato nos conhecer por completo, ou se nos conhecem melhor
aqueles que convivem mais de perto conosco. A realidade raramente cede à
lógica. Encontro indicações de que me enxergam e entendem com menos
ruído aqueles que me observam de longe, com maior casualidade ou que
acabaram de me conhecer.
O senso comum exige que o amor é cego e nos faz estúpidos, mas o
senso comum é um velho antiquado que ama usar de sarcasmo sem ser
compreendido. Tenho forte tendência a crer no contrário; como ensinou-me
meu amigo Ivan, para quem amar não é ser afligido com a cegueira, mas
ser premiado com “uma lucidez exacerbada”, um conhecimento privilegiado e
sem qualquer distorção da verdadeira natureza da pessoa que amamos.
Amar implica em lucidez: talvez seja por isso que amamos menos do que
deveríamos. Porém não há quem não se orgulhe da sua lucidez, quem não
lute para defendê-la e vê-la reconhecida. Deixar-se amar, por outro
lado, demanda singeleza de coração, autoconhecimento e autoestima –
virtudes quietas que raramente andam juntas, e que mesmo separadas são
mais raras do que a lucidez.
Talvez esse seja o apelo grande e terrível do Deus cristão, o apelo
que o torna irresistível para alguns e dificílimo de engolir para
outros: seu apresentar-se como pessoa que nos conhece por completo e que
nos ama por completo – quando sabemos que no mundo real as duas coisas
simplesmente não teriam como coexistir.
Uma vez lançada no ar, a ideia não tem como não desafiar a fé dos
mais crentes e a desilusão dos mais desiludidos. Seria possível? Alguns
de nós recorrem a psicanalistas só para experimentar nesta vida como
seria o sabor de sermos simultaneamente conhecidos e aceitos, outros
deixam que Deus cubra nominalmente essa lacuna. Porém nem a fé no amor
de Deus nem a lanterna fustigante da psicanálise são garantia de que nos
permitiremos finalmente a sentirmo-nos amados. A maior gentileza de
fora não conseguirá forçar-nos a sermos gentis conosco mesmos. Esse
passo tremendo, ao mesmo tempo minúsculo e caríssimo, terá de ser dado
de dentro para fora.
Mesmo os que rejeitaram por completo a ideia de Deus debatem-se com
os dilemas e mistérios do amor, e fazem-no muitas vezes com mais fervor e
menos superficialidade do que os que não abriram mão do divino
conforto. Não há ateu que não saiba que é importante não ter ilusões, e
não há ser humano que não lute para decidir onde reside o amor no
espectro entre realidade e ilusão.
É tremendamente custoso existir sem saber se quando amamos somos
nobres ou egoístas, generosos ou estúpidos, profundos ou socialmente
condicionados, genuínos ou iludidos, finalmente livres ou inteiramente
movidos por comandos do nosso DNA. Nossos discursos destilam certezas
voláteis, mas ninguém tem como saber ao certo. Quando amamos é por nossa
própria conta e risco, e aí residem o charme e a insensatez da coisa
toda.
E se amar é assim custoso, ser amado requer maior despejo e envolve
riscos maiores. Quando amamos nos submetemos ao risco perene de perder o
que temos de mais precioso; deixando-nos amar nos submetemos ao risco
de perder a nós mesmos.
Quem não iria desejar o amor? Quem seria louco de tentar? A condição
humana reside na intersecção entre essas hesitações, e em cada uma de
suas precárias execuções.
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* Escritor
Fonte: http://www.baciadasalmas.com/06/12/2013
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