A “coisa em si” enquanto fenômeno religioso é inacessível e “limita” as pessoas pelas “representações que as definem”, pontua Colby Dickinson (foto). Para Zizek, o cristianismo é singular, pois aponta para sua própria profanação DICKINSON, Colby. Between the Canon and the Messiah: The Structure of Faith in Contemporary Continental Thought (London: Bloomsbury, 2013).
“Partindo do trabalho sobre a imanência de filósofos como
Deleuze ou Agamben, por exemplo, seria possível procurar estabelecer um
elo entre essas ontologias e as exigências de uma compreensão mais
imanente do divino feitas dentro de certas teologias contextuais”,
observa o teólogo Colby Dickinson na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Segundo ele, para Zizek “o cristianismo é singular na medida em que
aponta para sua própria profanação, sua própria distância em relação a
Deus — algo que, no fim das contas, forma o ponto zero para uma nova
forma de pensamento sobre o sagrado. Assim, ele repreende Agamben
levemente por sugerir que a profanação seja o único objetivo aqui, pois
tal ‘profanação absoluta’ parece terrivelmente próxima de outra forma de
revitalização do sagrado para além das noções falsas de sacralidade
formadas por meio de práticas de fazer de outrem um bode expiatório”.
Dickinson menciona que o Papa Francisco parece querer enfatizar que
“o cristianismo tem uma mensagem mais profunda do que muita gente supôs
que contivesse, uma mensagem que explode nossa percepção muito mundana
de como se forma a comunidade, e que essa mensagem precisa ser
enfatizada repetidamente. Acho que ele está genuinamente lembrando algo
que não é inteiramente desconhecido do que os ‘retornos à religião’ da
filosofia contemporânea têm demonstrado: há uma necessidade central de
derrubar alguns muros de divisão e de fazer isso a partir de dentro
desses muros, trabalhando com a tradição a fim de vê-la se tornar mais
justa no presente momento”.
Colby Dickinson é professor assistente de Teologia na Universidade
Loyola, em Chicago. É autor de Agamben and Theology (London: T&T
Clark, 2011) e Between the Canon and the Messiah: The Structure of Faith
in Contemporary Continental Thought (London: Bloomsbury, 2013) e de
vários artigos sobre filosofia e teologia continental contemporânea. É
editor de The Postmodern ‘Saints’ of France (London: T&T Clark,
2013) e The Shaping of Tradition: Context and Normativity (Leuven:
Peeters, 2013).
Esta entrevista foi publicada previamente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 24-11-2013.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as peculiaridades da fé no pensamento continental contemporâneo?
Colby Dickinson - De muitas formas, penso que
estamos reiterando continuamente uma tensão histórica particular, a
tensão entre uma medida (ou regra) normativa e os que procuram opor-se a
ela ou anulá-la, o que eu chamaria de os supostos movimentos
“antinomianos” (anti-nomos ou anti-“lei”), com os quais ainda não
sabemos o que fazer tanto em termos religiosos como políticos. Por sua
vez, o antinomismo surgiu como um rótulo usado durante a Reforma para
descrever as pessoas que aparentemente queriam eliminar a lei
inteiramente; ou seja, as que, com efeito, interpretaram a crítica de
Martinho Lutero contra o sistema católico (isto é, suas “regras”,
direito canônico, sistema de indulgências, etc.) como renúncia, em algum
sentido, de toda lei. De muitas formas, essa reação era algo que já
estava embutido no posicionamento de Jesus para com a lei judaica, e
essa possibilidade só fez inflamar ainda mais as paixões de alguns dos
mais devotos seguidores de Lutero. Este último, entretanto, como
sabemos, teve de tentar evitar que essas medidas antinomianas se
afastassem demais da “regra de Deus”, que o próprio Lutero ainda queria
manter de alguma forma. Como nos recordamos, ainda havia conexões demais
a serem estabelecidas por Lutero entre a igreja estabelecida na terra e
as estruturas de poder político existentes; por isso, em seus escritos,
ele tentou manter alguma fidelidade à forma da lei e sua “necessidade”,
e sua capacidade de utilizar a “espada” para refrear seus cidadãos
desregrados era algo que ele tinha grande interesse em unir com o
ordenamento da sociedade por parte de Deus.
Impulso “antinomiano”
O que me fascina particularmente hoje em dia é a maneira pela qual o
pensamento continental contemporâneo nos fez voltar à contemplação desse
impulso “antinomiano” fundamental que sustenta muitos movimentos
políticos e religiosos revolucionários. De muitas formas — e Jacob
Taubes retoma isso diretamente em sua obra sobre A teologia política de
Paulo (Stanford: University Press, 2004), o próprio cristianismo é,
talvez, o impulso antinomiano original por excelência em relação ao
judaísmo (lei judaica ou torá). Isso é algo que ele extrai dos estudos
de Gershom Scholem sobre movimentos messiânicos dentro da história
judaica, em particular a história de Sabbatai Zevi . Como Giorgio
Agamben relataria tais impulsos mais tarde (e citações de Sabbatai Zevi
também estão presentes em sua obra), talvez haja, dentro do judaísmo,
um impulso “antinomiano” messiânico interno que questiona as
representações normativas que o judaísmo tem de si mesmo (como, por
exemplo, quando os profetas clamam contra as estruturas do ritual
religioso, quando uma noção de messias se desenvolve pela primeira vez,
etc.). Este último ponto só parece ser mais sustentado ainda pelas
muitas formulações propostas por Jacques Derrida a respeito do
messiânico como força desconstrutiva interna que atua dentro de uma dada
estrutura, e esta é uma posição que foi interpretada como judaica (G.
Ofrat ), ateísta (M. Hägglund ) ou até cristã (L. Lawlor ).
Minha reação a essas interpretações diversificadas tem sido dizer que
todas elas estão corretas em certo sentido, pois todas estão tentando
acessar aquele cerne messiânico central de nosso pensamento político e
religioso que continua a motivar a reestruturação de nossas normas
(sociais, culturais, políticas, religiosas e até econômicas) dadas.
Continuamos tentando encontrar novas formas de descrever como estamos
constantemente gerando novos paradigmas e continuamente nos deparamos
com um muro: de onde vem a reforma revolucionária? Como alteramos as
estruturas que parecem ser imutáveis e de que tantas pessoas dependem
(“em que creem”) em seu cotidiano? A resposta de Derrida, muito
semelhante à de Agamben neste tocante, é que ela vem de dentro do que já
operava como uma forma estrutural canônica, mas uma forma que foi
empurrada até seus limites e está em processo de se tornar consciente de
suas limitações dentro de um novo contexto e de sua necessidade de que
seja feita mais justiça.
Um segundo olhar
O que percebo no presente é que o fundamento da fé (organizada) está
sendo objeto de uma segunda olhada entre os pensadores filosóficos
continentais contemporâneos, porque ela parece aderir à dinâmica
fundamental (ou talvez até gerá-la) que está sob nossos paradigmas
políticos e éticos no Ocidente. Por mais que, culturalmente, procuremos
nos afastar das tradições religiosas organizadas, há algo persistente
dentro delas que merece atenção, e até a atenção de ateus
autoproclamados (e acho que o atual papa está consciente disso e está
indo ao encontro de parte desse desejo com suas observações públicas).
Interpreto a referência contínua de Slavoj Žižek ao cristianismo
exatamente como um exemplo que mostra como necessitamos muito reformular
o que significa interpretar a relação entre religião e política como
central para nossa atual rede de formas culturalmente inteligíveis — até
mesmo, ou talvez especialmente, quando as pessoas acham que a fé está
se tornando obsoleta para muitos.
IHU On-Line - Nesse contexto, qual é a relação que pode ser
estabelecida entre os conceitos de messianismo e as formas canônicas?
Colby Dickinson - Minha interpretação, em meu livro
Between the Canon and the Messiah, é que temos continuamente necessidade
de reconhecer, manter e também abordar as configurações atuais das
tensões que existem entre formas canônico-culturais dadas (sejam elas
religiosas, escriturísticas, sociais, políticas, etc.) — aquelas
estruturas aparentemente permanentes que foram passadas adiante como
parte de nossa “tradição” — e suas próprias forças messiânicas internas
que procuram constantemente — sejam elas queridas ou não — anulá-las a
fim de torná-las mais responsáveis e mais justas. Isto é, e demonstrando
a mais antiga linguagem filosófica que ainda usamos —, existe uma
tensão entre o desejo de representar algo e a apresentação da “coisa em
si” que sempre parece nos escapar, e que na verdade revela as limitações
de qualquer representação.
Aparentemente sempre persistiu, dentro da especulação filosófica, uma
ideia de que há uma coisa além de nossas representações que não
conhecemos plenamente, ainda que, se a conhecêssemos, compreenderíamos
imediatamente quão limitadas (“injustas”) eram nossas representações
dessa coisa. Essa é talvez uma das mais antigas e prementes questões
religiosas, e uma questão que ainda precisa muito ser repensada a partir
de novas perspectivas, pois não estamos mais tão certos de que podemos
acessar uma “coisa em si mesma” por trás de nossas representações dela,
e, ainda assim, muitas pessoas sentem uma certa limitação no sentido de
que estão sendo limitadas, às vezes, pelas representações que as
definem. O que estou tentando discernir é a maneira pela qual essa
tensão (religiosa e política) entre uma representação e uma apresentação
para além da representação está muito envolvida nas lutas de uma forma
representativa “canônica” e sua anulação (“desconstrução”) por parte de
forças que estão operando a partir de dentro dela para reformulá-la e
torná-la uma representação mais acurada de algo que não pode ser
nomeado.
"Interpreto a referência contínua de Slavoj Žižek ao cristianismo
exatamente como um exemplo que mostra como necessitamos muito reformular
o que significa interpretar a relação entre religião e política como
central para nossa atual rede de formas culturalmente inteligíveis — até
mesmo, ou talvez especialmente, quando as pessoas acham que
a fé está
se tornando obsoleta para muitos."
Forças messiânicas
Para alguém como Derrida, tal tensão só poderia ser testemunhada como
a presença espectral da messianicidade (nunca um “messianismo”
histórico) atuante dentro de qualquer forma canônica dada, e aquilo que
identificava, para ele, os pontos mais maduros para desconstrução em
nome de uma justiça que sempre era ativa, sempre ainda “por vir”, dentro
da estrutura canônica (ou do texto canônico) com que ele estava
trabalhando naquele momento particular no tempo. Quer certos pensadores
achem que tal tensão não pode ser mantida e que deveríamos admitir ou
que sempre há apenas representações diante de nós (Derrida, Žižek) ou
que todas as representações deveriam ser eliminadas (o que Agamben
parecia estar sugerindo durante anos como a verdadeira abordagem
“antinomiana”, embora talvez não tanto recentemente), ainda estamos
lidando com aquela mesma questão fundamental: o que devemos fazer com os
impulsos antinomianos? Como tais forças messiânicas alteram as
estruturas (canônicas) que criamos e como lidamos com o impulso de
destruir ou reformar tais estruturas? Podemos falar sobre os desejos
inerentes que temos de trabalhar contra o sistema? Podemos aprender a
vê-los chegando e negociar com eles, mesmo enquanto estamos construindo
sistemas atuais, como é o caso daqueles arquitetos que efetivamente
planejam locais futuros de expansão dentro de um projeto atual, e coisas
assim?
Como exemplo concreto dessa dinâmica, quando preenchemos alguns
formulários-padrão do governo (americano), eles nos perguntam com que
“raça” ou “etnia” nós nos identificamos — uma coisa notoriamente difícil
de determinar para algumas pessoas —, historicamente um funcionamento
muito problemático de percentuais para alguns (isto é, os americanos
indígenas, que não são mais classificados como tais se forem
considerados afastados demais de seus ancestrais), ou a circunstância de
ser completamente definido por um pequeno percentual para outros.
Quando eu era pequeno, tais representações consistiam principalmente de
apenas “branco”, “afro-americano”, “asiático” e “outro”. Ao longo dos
anos, essas categorias limitadas foram consideradas inadequadas (ou
“injustas”) e foram ampliadas para incluir muitos outros agrupamentos.
Estamos vendo essa ampliação contínua em nome de uma representação mais
igual surgindo em todo o globo agora e incluindo certas coisas que
anteriormente eram “inconcebíveis”, como o gênero (p. ex., a categoria
oficial “terceiro gênero” da Austrália). É dessas ampliações que estou
falando quando digo que uma forma canônica está sendo anulada em meio a
clamores por mais justiça e em meio a um reconhecimento de que nossas
categorias atuais são passíveis de serem anuladas a partir de dentro,
mas esse é apenas um pequeno exemplo conveniente entre outros.
Identidade nacional, reformas da imigração e muitos outros assuntos
ainda circulam na periferia dessa mesma dinâmica fundamental.
Divisões canônicas
Eu deveria acrescentar, também, que a chave para reconhecer a
anulação de uma dada forma “canônica” a partir de dentro é um mecanismo
ativo de autorreflexividade ou autoconsciência (relacionada de muitas
formas com as raízes da “confissão” e coisas semelhantes). Assim como S.
Paulo foi capaz de “dividir as divisões” do universo judaico da
antiguidade, levando-as da divisão de judeu versus gentio para uma
reflexão interna mais profunda sobre como o próprio judeu estava
dividido interiormente em Carne e Espírito, assim nós também somos
capazes, se aplicarmos mecanismos de autorreflexão semelhantes, de
perceber as limitações de nossas próprias divisões categóricas
(canônicas). Refletir durante tempo suficiente sobre o que significa ser
(ou representar-se como) um “homem” — como apenas um exemplo entre
muitos — pode levar rapidamente a percepções profundas sobre como
quaisquer descritores que procuremos usar para definir tal coisa podem
também ser contestados, questionados e reposicionados em outras formas.
IHU On-Line - Como essas ideias se inter-relacionam e quais são os pontos de ruptura nas obras de Benjamin , Derrida e Agamben?
Colby Dickinson - Tenho estado interessado na adoção
de métodos hermenêuticos por parte de Ricoeur , especialmente na medida
em que eles parecem, às vezes, oferecer à teologia a única forma de
entender como ela precisa se formular em meio a uma série de tensões
(políticas) entre normas canônicas e sua anulação messiânica, e
especialmente na medida em que tal tensão está no cerne tanto das
escrituras judaicas quanto das cristãs. Penso que o próprio Ricoeur
aponta para tal compreensão em muitos lugares de sua obra,
particularmente em sua exposição das tensões dentro da atitude farisaica
em A simbólica do mal, bem como em seu livro Memória, história,
esquecimento, onde somos lembrados de versões canônicas da história e
das distorções delas, mas também de seus esforços para produzir uma
visão mais acurada da história.
Muitas vezes, interpreto Derrida como sendo realmente bem mais
hermenêutico do que ele muitas vezes reconheceu, e acho que foi muitas
vezes interpretado equivocadamente neste ponto; ele está bem mais
próximo de Ricoeur do que muitos talvez suspeitem. Também de sua parte, a
obra mais recente de Agamben intitulada O Reino e a Glória (São Paulo:
Boitempo editorial, 2011) parece oferecer uma tensão hermenêutica que
tem mais afinidade com Ricoeur do que talvez tenha sido percebido
primeiramente em sua obra, que muitas vezes pode ter parecido favorecer
demais apenas aquelas tendências “antinomianas” das quais já falei. Sua
afirmação aí de que uma comunidade genuína pode possivelmente ser
encontrada mantendo-se uma tensão entre a lei, por um lado, e a Igreja
(ou forças messiânicas), por outro, é realmente surpreendente e algo que
parece ilustrar muito bem alguns dos aspectos hermenêuticos mais sutis
que Ricoeur destaca, embora reste muito mais a ser dito sobre essa
conexão.
Em meu próprio trabalho, até agora tentei — mas de fato só
preliminarmente — visionar como poderia ser uma “hermenêutica teológica
radical”, seguindo a obra de Ricoeur de muitas formas como guia. Não
tenho certeza se minha versão da hermenêutica ainda acaba sendo uma
hermenêutica no final ou se ela é “radical” demais (tendo, nesse
sentido, talvez demais em comum com o uso da palavra “radical” no livro
Radical Political Theology de Clayton Crockett ), mas gosto de pensar
que alguma forma de hermenêutica sempre está atuante em minhas leituras
de contextos e autores contemporâneos.
IHU On-Line - Nessa lógica, qual é a contribuição de Jan
Assmann , Gershom Scholem, Jacob Taubes e Paul Ricoeur no estudo dos
conceitos de messianismo e formas canônicas?
Colby Dickinson - De muitas formas — e neste ponto
poder-se-ia consultar a obra de Jan Assmann para aprofundar esse assunto
—, pode-se dizer que qualquer representação canônica exerce algum grau
de violência em sua inscrição do que poderíamos chamar de seus “sujeitos
canônicos” — as pessoas cujas identidades são formadas em relação a uma
dada cultura canônica. Até mesmo a entrada na língua, para todas e
todos nós, representa uma certa experiência de sermos limitados em
nossas expressões. Só temos um certo léxico específico para usar na
descrição de nossas experiências e não temos condições, na maior parte,
de expressar um sentimento para além do uso dessas palavras. Assim,
passamos por violência ao nos identificarmos com uma forma canônica
específica e ao permitirmos que certas representações nos identifiquem.
Por exemplo, eu sou classificado corretamente como um “católico branco,
americano, do sexo masculino, heterossexual, etc.”, embora também esteja
bem consciente de que esses termos não relatam adequadamente muito do
que eu sou e de que, às vezes, fico preso por esses descritores de
maneiras com as quais não me sinto à vontade e contra as quais me
rebelo. Faço o possível, na verdade, para interrogar esses termos na
medida em que eles se aplicam a mim e contestar o que essas palavras
significam quando elas parecem não se aplicar a mim tanto quanto
efetivamente se aplicam a mim.
Pressupostos “antinomianos”
Essa oscilação entre aceitar uma dada norma canônica como inevitável e
como o sacrifício necessário para um senso compartilhado de
inteligibilidade cultural (ou língua) e buscar anular alguns dos
aspectos mais constritivos ou violentos de um dado sistema
cultural-linguístico é, ela própria, uma tensão inevitável e necessária.
Por mais que tentemos, não conseguimos eliminá-la, embora talvez
consigamos formar uma forma “pura” de crítica que nos permita reconceber
a tensão. Penso que é isso que motivou o trabalho de Agamben, por
exemplo, desde o início: tentar identificar como poderia ser essa
crítica e como poderíamos nos envolver nela diariamente. Isso certamente
é, em minha opinião, o que continua a animar certos pressupostos
“antinomianos” em relação a como deveríamos abordar uma norma ou
estrutura canônica dada.
IHU On-Line - De que forma podemos compreender a “violência” do Canon?
Colby Dickinson - Gastamos muito tempo tentando
diferenciar entre as várias religiões e escrituras existentes hoje em
dia, bem como as interpretações variadas dessas tradições que continuam a
proliferar ao longo do tempo, mas não estou realmente convencido de que
a maior parte dessa discussão nos ajude muito. O critério-padrão usado
para classificar essas tradições religiosas é, muitas vezes, um critério
muito vazio: qual delas é verdadeira? Eu preferiria que começássemos a
abordar as várias religiões do mundo — o que sempre significa abordar
cada linha interpretativa particular de uma dada tradição religiosa, e
que talvez possam, ou não, ser agrupadas sob um único nome (as
“judaicidades” de Derrida é um termo que me ocorre nesse sentido) —
perguntando a respeito da proximidade delas para com a violência, outra
medida da “verdade”. E o que a proximidade delas para com a violência —
bem como o fato de admitirem ou negarem essa proximidade — nos diz sobre
sua existência contínua? Em outras palavras: são certas tradições
religiosas (mesmo dentro de uma dada “religião”) capazes de se
desconstruir e confessar que estão dispostas a se envolver em ações
violentas para certos fins circunscritos? Esses fins são justificáveis,
em última análise? E elas são transparentes (autorreflexivamente
conscientes) a ponto de até reconhecer sua relação com violências
específicas, existentes?
Minha proposta é que talvez um diálogo como esse nos ajude a
discernir uma série de coisas em relação à religião em geral, começando
por nossos desejos de rotular uma dada tradição escriturística ou
litúrgica como “canônica”, de dar mais, e não menos, definição de nossos
vínculos comunitários (quem está dentro, quem está fora,
inclusão/exclusão) e de encenar representações violentas quando não
temos condições de consolidar nossa comunidade como tal. Essencialmente,
essa crítica provém diretamente do trabalho de René Girard sobre o
bode expiatório, e a pergunta tem de ser feita mais diretamente: que
grupos religiosos estão dispostos a fazer outros de bode expiatório, de
modo que sua própria gente se sinta mais segura, mais unida, mais leal
entre si, justamente através do sacrifício de outra pessoa ou outro
grupo de pessoas? O vigoroso retrato feito por Girard dessa dinâmica
dentro de muitas religiões e narrativas mitológicas diz que tais
histórias aparentemente “sagradas” são, na realidade, pouco mais do que
esforços ideológicos para formar o senso de coesão de um grupo e são
aquilo que outras escrituras talvez de fato rejeitem (particularmente os
cânones judaico e cristão, mas também outras, como certas escrituras
hinduístas, entre outras).
Salto no escuro
Uma das coisas que eu gostaria de explorar mais do que Girard o faz é
a maneira pela qual sua teoria poderia nos ajudar a perceber como até
mesmo nossa busca de definições, representações, certeza e coisas
semelhantes pode ser vista, às vezes, como formada a partir de dentro
dessa busca de coesão grupal e segurança. Creio, com efeito, que nossas
deduções muito “lógicas” podem, com frequência, ser uma resposta à
percepção de uma ameaça e um momento de imposição violenta a uma
situação que deveria permanecer isenta de sobredeterminação. Estou
pensando nesse sentido especificamente em como as pessoas, hoje em dia,
muitas vezes tentam “definir” sua fé, e o fazem com uma mentalidade que
está tentando ter “certeza” a respeito dela. John Henry Newman , de sua
parte, salientou certa vez que a fé tem múltiplas camadas e que se chega
a ela através de uma série complexa de probabilidades (p. ex., nosso
contexto, situação familiar, experiências anteriores, argumentos
racionais, entre outros) que convergem para levar uma pessoa à fé. A fé
não é um simples “salto” para o escuro nesse sentido, embora possa
implicar muitos pequenos saltos que estamos dispostos a dar por razões
muito específicas em pontos muito específicos ao longo do caminho, ainda
que esses fatores também possam verdadeiramente permanecer
desconhecidos para nós para sempre. Tentar reduzir essa complexidade a
uma “certeza” específica significa, em última análise, fazer alguma
outra coisa de bode expiatório para produzir tal estado. Ou seja, a fim
de me dizer que eu tenho uma fé configurada assim e assado, preciso
esquecer isso ou aquilo, preciso deixar de me envolver com a fé de meu
vizinho budista, etc. Mas essa redução da complexidade da fé é muito
comum atualmente e solapa muitas interpretações possíveis da religião
que, muitas vezes, ficam completamente despercebidas.
Sagrado e violência
Acabo de concluir a leitura do vasto tomo intitulado Menos que nada
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2013), de Žižek, e fiquei bastante
contente em ver que, em sua conclusão, há uma espécie de alternância
entre as teorias de Girard e a obra de Agamben, justamente no tocante a
essa questão da violência e do sagrado na medida em que ela tange a
ideologia. O que Žižek sustenta é, mais ou menos, que a ideologia, seja
em suas formas econômicas ou políticas, é configurada por uma certa
relação entre o “sagrado” e a violência, e que pode ter pouco ou nada a
ver com as reivindicações efetivas do cristianismo — um aspecto que ele
sublinha de um modo que me lembra a forma como Vattimo se apropria de
Girard. O que ele afirma, com efeito, é que o cristianismo é singular na
medida em que aponta para sua própria profanação, sua própria distância
em relação a Deus — algo que, no fim das contas, forma o ponto zero
para uma nova forma de pensamento sobre o sagrado. Assim, ele repreende
Agamben levemente por sugerir que a profanação seja o único objetivo
aqui, pois tal “profanação absoluta” parece terrivelmente próxima de
outra forma de revitalização do sagrado para além das noções falsas de
sacralidade formadas por meio de práticas de fazer de outrem um bode
expiatório. Sugeri, de modo geral, a mesma coisa no final de meu livro
Agamben and Theology e, em outras publicações, escrevi sobre como essa
interpretação compartilha a tese básica de Girard referente à violência e
ao sagrado.
IHU On-Line - E que relações podem ser estabelecidas entre a
violência e o sagrado? Esse binômio é atual para compreendermos o
fenômeno religioso? Por quê?
Colby Dickinson - Tem havido bastante interesse em
tentar verificar como, exatamente, poderia ser uma “teologia da
imanência” na atualidade, e fico fascinado com o número de teólogos que,
de tempos em tempos, se envolvem na tentativa de montar algo assim.
Partindo do trabalho sobre a imanência de filósofos como Deleuze ou
Agamben, por exemplo, seria possível procurar estabelecer um elo entre
essas ontologias e as exigências de uma compreensão mais imanente do
divino feitas dentro de certas teologias contextuais (p. ex., M. Daly ,
G. Jantzen ). Aquilo de que muitas vezes se fala menos, penso eu, é como
essas conclamações a uma teologia da imanência são, com frequência,
realmente contestações políticas de associações masculinas tradicionais
da transcendência com estruturas hierárquicas e dizem pouco, se é que
dizem, sobre a natureza do divino — se, afinal, se pudesse dizer
qualquer coisa a respeito do divino a partir de uma posição teológica
(enquanto filosoficamente especulativa).
Penso, entretanto, que qualquer discurso sobre uma “teologia da
imanência”, visto do interior de um contexto teológico tradicional, já é
uma ideia assustadora para muitas pessoas. Maurice Blondel , que
pessoalmente propôs, certa vez, um “método da imanência” como forma de
se envolver com o que está à nossa frente e de enxergar suas limitações
em si mesmo, remetendo-nos, assim, para o que é “transcendente” em
relação a nós, foi, ele próprio, acusado de negar a transcendência de
Deus, e acho que há muitas pessoas dentro da igreja atualmente que
hesitam até mesmo em invocar uma expressão como “teologia da imanência”.
Colapso
Nesse sentido, fico muito intrigado com os vários filósofos
“orientados pelo objeto” que tentam levar ao colapso a (enganosa)
distinção tradicional entre o sujeito e seu objeto. Os esforços de Bruno
Latour para desmontar esse dualismo sujeito-objeto, em minha opinião,
sinalizam algo assim como o colapso da divisão-padrão entre
transcendente e imanente, bem como uma abertura para um repensar
completo da separação transcendência/imanência, embora muito trabalho
ainda tenha de ser feito nesse tocante. O novo livro de Latour sobre
linguagem religiosa, Rejoicing: Or the Torments of Religious Speech
(Cambridge: Polity Press, 2013), é útil nesse sentido, assim como o é o
novo livro de Adam Miller sobre Latour, que é um passo na direção
certa, penso eu, e gostaria de ver muito mais pesquisa sendo realizada
nessas áreas.
IHU On-Line - A partir das ideias de Rene Girard e de
Agamben, podemos dizer que a lógica sacrificial invadiu outras esferas
da sociedade, como a economia, por exemplo. Como você percebe essas
relações e quais são suas consequências?
Colby Dickinson - Acho que esse momento em que
vivemos agora — presos entre essas tensões de uma cultura crescentemente
secularizada e um certo retorno da religião — é uma faca de dois gumes.
Há muitas grandes oportunidades a serem aproveitadas para redescrever o
papel valioso que a religião desempenha e continuará a desempenhar na
vida das pessoas no futuro, mas também há, penso eu, uma cautela
profundamente prática que deveríamos ter no sentido de que muitas
pessoas vão utilizar esse espaço para fazer lobby em favor de mais poder
político e reafirmar os vários fundamentalismos que já nos afligem. É
por isso, mais uma vez, que acho que devemos começar examinando
seriamente nossas próprias “confissões”, as raízes da consciência
autorreflexiva que estão em nós e nos conclamam a tornar-nos mais
conscientes dos rótulos injustos que aplicamos a nós e aos outros. Sem
tal mecanismo de autorreflexividade, continuaremos perdidos.
Dessa maneira, penso que simplesmente aceitar a aparente cisão entre o
sagrado e o secular muitas vezes significa deixar de perceber a
verdadeira dinâmica à qual devemos prestar atenção: que o profano já
está preso dentro do sagrado e vice-versa. Até mesmo essa mais
fundamental divisão cultural para algumas pessoas pode, e deveria, ser
dividida. Muitos muros podem ser derrubados se nos dermos conta de que
nossa experiência de Deus deve, por sua própria natureza, ser, às vezes,
uma experiência da ausência de Deus. Há uma longa tradição nesse caso,
desde Paulo, passando por João da Cruz , até Thomas Merton e muitos
outros, que sabe como falar dessas coisas, embora esse seja um diálogo
que muita gente abandonou atualmente. Acho que há muitas oportunidades
singulares que são subsequentemente perdidas quando concluímos que não
nos resta nada a dizer uns aos outros, quando a verdade é que resta
tanta coisa a ser dita.
IHU On-Line - O que há por trás de uma “teologia da imanência” em nossos dias?
Colby Dickinson - Como já mencionei, estamos nos
perguntando continuamente como devemos mudar as estruturas religiosas e
políticas existentes, que é uma questão especialmente difícil quando as
estruturas de que estamos falando implicam uma política profundamente
arraigada dentro dessas estruturas religiosas. Olho o que o papa
Francisco está fazendo agora e observo uma série de teólogos do momento
nos Estados Unidos. O que ele irá mudar, e como isso será visto pelas
pessoas que ele pastoreia? Seus comentários recentes sobre o
clericalismo como mentalidade estreita foram esclarecedores nesse
sentido, pois ele percebe seu próprio desejo de ser “anticlerical”
quando confrontado com as estruturas (e suas fantasias ideológicas
correspondentes) do clericalismo. Mas também se deveria observar
cuidadosamente que ele começou essa entrevista específica com a admissão
(confissão) de que é um pecador, e de que é somente a partir desse
reconhecimento que ele pode seguir em frente.
Eu apostaria que a crítica de Girard a respeito de nosso falso
fundamento comunitário compartilha da crítica do papa acerca das
identificações autorreferenciais feitas a fim de que nos sintamos mais
seguros e mais parte de uma comunidade unida, mas, em última análise,
enganadora. E suspeito que sua disposição de formar seu senso de
comunidade de um modo diferente esteja menos inclinada, então, a definir
aqueles membros que precisam ser excluídos dela (isto é, a obsessão que
muitas pessoas têm tido dentro da Igreja Católica com os homossexuais,
os que buscaram abortos, casais divorciados, etc.). O que o papa parece
querer enfatizar é que o cristianismo tem uma mensagem mais profunda do
que muita gente supôs que contivesse, uma mensagem que explode nossa
percepção muito mundana de como se forma a comunidade, e que essa
mensagem precisa ser enfatizada repetidamente. Acho que ele está
genuinamente lembrando algo que não é inteiramente desconhecido do que
os “retornos à religião” da filosofia contemporânea têm demonstrado: há
uma necessidade central de derrubar alguns muros de divisão e de fazer
isso a partir de dentro desses muros, trabalhando com a tradição a fim
de vê-la se tornar mais justa no presente momento. Penso que o papa está
tocando em algumas possibilidades nesse sentido, embora somente o tempo
vá dizer se ele está verdadeiramente comprometido em dar início a esses
processos. De momento, em minha opinião, parece que ele está
verdadeiramente tentando fazer exatamente isso. Seguindo as percepções
de Žižek, talvez a aparência do que o papa está fazendo seja realmente
tudo o que importa no fim das contas: o que vemos o papa fazer é de fato
o que ele está fazendo, e essa é a imagem que irá reconfigurar a
Igreja, e talvez o mundo.
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Reportagem Por: Márcia Junges/Tradução: Luís Marcos Sander
Fonte: IHU - http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5297&secao=433
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Colby Dickinson já concedeu outra entrevista à IHU On-Line, junto de Adam Kotsko. Confira:
- Agamben e a estreita relação entre filosofia e teologia. Edição 427, de 16-09-2013.
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