O maior crítico literário do Brasil, o professor Antonio Candido de
Mello e Souza, não gosta de dar entrevistas. Aos 95 anos, voz firme,
memória sem vacilos, ele mesmo atende ao telefone de casa e vai logo
explicando: "Conversa? Aqui em casa? Não vai dar. Estou me recuperando. É
uma pequena cirurgia". O dever de ofício nos obriga a insistir. Ele se
rende ao ouvir que não precisará falar de política ou de atualidades. A
conversa será sobre o amigo Florestan Fernandes. Mais especificamente
sobre as cartas por meio das quais trocavam ideias e se conheceram, na
década de 1940, antes de se encontrar pessoalmente.
"Você quer saber como eu conheci Florestan?", pergunta. "Ele lia meus
rodapés e começou a me escrever. Eu era crítico da 'Folha da Manhã',
hoje é a 'Folha de S.Paulo'. Naquele tempo o crítico fazia artigo toda
semana. Ficava na parte de baixo do jornal, por isso chamávamos rodapé. O
nome do meu era 'Notas de Crítica Literária'. Um dia entrei na
faculdade e vi um rapaz encostado numa parede, em pé, lendo um livro,
'Uma Vida de Buda'. Olhei bem, cheguei perto e perguntei: 'Você é o
Florestan?' Na mesma hora ele respondeu: 'E você é o Antonio Candido'.
Foi assim. E ficamos amigos. Até então só nos conhecíamos pelas cartas."
Valor: Mas como é que numa faculdade, com tanta gente, o senhor olhou justamente para ele e suspeitou que fosse Florestan?
Antonio Candido: Não sei... Até hoje não sei como isso aconteceu. Acho que foi a intuição. Ele teve essa mesma intuição.
Valor: Como era a relação dos senhores nessa época?
Antonio Candido: Eu era o primeiro-assistente do
professor Fernando de Azevedo e Florestan logo se destacou na faculdade.
Vagou o cargo de segundo-assistente e ele foi convidado para assumir
esse lugar. Ele logo foi muito respeitado por todos. Outro dos nossos
professores era Roger Bastide, que, depois, até convidou Florestan para
ir à Europa.
Valor: E os senhores foram professores...
Antonio Candido: Ele era um professor como poucos.
Foi um mestre. Eu dou muita importância à obra de Florestan. Você sabe
que ele, durante muito tempo, se preocupou muito com a teoria. Veja
quando ele estudou e fez sua tese de doutorado com "A Função Social da
Guerra na Sociedade Tupinambá". Não havia como estudar isso, pesquisando
in loco, como fazíamos. Ele fez toda a tese lendo, pesquisou tudo o que
havia sido escrito. Estudou por meio dos cronistas da época. Como
viviam os tupinambás, o que faziam. Diziam na época que isso era
impossível. Ele mostrou que não era. E fez um trabalho inacreditável.
Fez um livro magistral. Mas, até então, ele só se preocupava com a
teoria. E conversamos sobre isso. Era preciso pesquisar o presente.
Assim começou a sociologia crítica, empenhada nos problemas sociais.
Valor: E os senhores ficaram amigos e as cartas continuaram?
Antonio Candido: Naquela época era o normal. Muitas
vezes um ia para um lado. O outro estava aqui. Mas nós fomos
companheiros, lado a lado na cadeira de sociologia 2. Passamos horas e
horas, dias e dias na mesma sala. Trocávamos ideias, discutíamos que
nota dar aos alunos, o que fazer com a cadeira. Havia muita discussão
sobre a educação, sobre a sociologia, sobre a teoria, a crítica. Junto
com isso, passamos a conviver com nossas famílias, nossos filhos.
Valor: Muitos intelectuais acabam tendo diferenças que os afastam. Isso não chegou a acontecer com os senhores...
Antonio Candido: Nunca. A senhora quer saber o
segredo de nossa amizade? Era o coleguismo. A faculdade é a maior fonte
de amizade que existe. Meus maiores amigos eram da faculdade. Minha
mulher [Gilda de Mello e Souza] era de lá. Sou de uma geração que nasceu
e viveu por causa da universidade. Não sei se todos entendem isso hoje.
(MG)
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