sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"O SEGREDO DE NOSSA AMIZADE ERA O COLEGUISMO"

 Leticia Moreira/Folhapress / Leticia Moreira/Folhapress
O maior crítico literário do Brasil, o professor Antonio Candido de Mello e Souza, não gosta de dar entrevistas. Aos 95 anos, voz firme, memória sem vacilos, ele mesmo atende ao telefone de casa e vai logo explicando: "Conversa? Aqui em casa? Não vai dar. Estou me recuperando. É uma pequena cirurgia". O dever de ofício nos obriga a insistir. Ele se rende ao ouvir que não precisará falar de política ou de atualidades. A conversa será sobre o amigo Florestan Fernandes. Mais especificamente sobre as cartas por meio das quais trocavam ideias e se conheceram, na década de 1940, antes de se encontrar pessoalmente.

"Você quer saber como eu conheci Florestan?", pergunta. "Ele lia meus rodapés e começou a me escrever. Eu era crítico da 'Folha da Manhã', hoje é a 'Folha de S.Paulo'. Naquele tempo o crítico fazia artigo toda semana. Ficava na parte de baixo do jornal, por isso chamávamos rodapé. O nome do meu era 'Notas de Crítica Literária'. Um dia entrei na faculdade e vi um rapaz encostado numa parede, em pé, lendo um livro, 'Uma Vida de Buda'. Olhei bem, cheguei perto e perguntei: 'Você é o Florestan?' Na mesma hora ele respondeu: 'E você é o Antonio Candido'. Foi assim. E ficamos amigos. Até então só nos conhecíamos pelas cartas."

Valor: Mas como é que numa faculdade, com tanta gente, o senhor olhou justamente para ele e suspeitou que fosse Florestan?
Antonio Candido: Não sei... Até hoje não sei como isso aconteceu. Acho que foi a intuição. Ele teve essa mesma intuição.

Valor: Como era a relação dos senhores nessa época?
Antonio Candido: Eu era o primeiro-assistente do professor Fernando de Azevedo e Florestan logo se destacou na faculdade. Vagou o cargo de segundo-assistente e ele foi convidado para assumir esse lugar. Ele logo foi muito respeitado por todos. Outro dos nossos professores era Roger Bastide, que, depois, até convidou Florestan para ir à Europa.

Valor: E os senhores foram professores...
Antonio Candido: Ele era um professor como poucos. Foi um mestre. Eu dou muita importância à obra de Florestan. Você sabe que ele, durante muito tempo, se preocupou muito com a teoria. Veja quando ele estudou e fez sua tese de doutorado com "A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá". Não havia como estudar isso, pesquisando in loco, como fazíamos. Ele fez toda a tese lendo, pesquisou tudo o que havia sido escrito. Estudou por meio dos cronistas da época. Como viviam os tupinambás, o que faziam. Diziam na época que isso era impossível. Ele mostrou que não era. E fez um trabalho inacreditável. Fez um livro magistral. Mas, até então, ele só se preocupava com a teoria. E conversamos sobre isso. Era preciso pesquisar o presente. Assim começou a sociologia crítica, empenhada nos problemas sociais.

Valor: E os senhores ficaram amigos e as cartas continuaram?
Antonio Candido: Naquela época era o normal. Muitas vezes um ia para um lado. O outro estava aqui. Mas nós fomos companheiros, lado a lado na cadeira de sociologia 2. Passamos horas e horas, dias e dias na mesma sala. Trocávamos ideias, discutíamos que nota dar aos alunos, o que fazer com a cadeira. Havia muita discussão sobre a educação, sobre a sociologia, sobre a teoria, a crítica. Junto com isso, passamos a conviver com nossas famílias, nossos filhos.

Valor: Muitos intelectuais acabam tendo diferenças que os afastam. Isso não chegou a acontecer com os senhores...
Antonio Candido: Nunca. A senhora quer saber o segredo de nossa amizade? Era o coleguismo. A faculdade é a maior fonte de amizade que existe. Meus maiores amigos eram da faculdade. Minha mulher [Gilda de Mello e Souza] era de lá. Sou de uma geração que nasceu e viveu por causa da universidade. Não sei se todos entendem isso hoje. (MG)
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REPORTAGEM Por Monica Gugliano | Para o Valor, de São Paulo
FONTE: Valor Econômico online, 13/12/2013

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