Noemi Jaffe*
Andrea Riseborough e James D'Arcy são Wallis Simpson e Eduardo VIII, que
renunciou
ao trono para casar-se por paixão, no filme "W.E."
Como a roda, o amor é também uma invenção. Só que, mais ainda do que a
roda, esta segunda invenção se tornou tão naturalizada que poucos a
entendem como uma construção cultural, tendendo mais a considerá-la - ou
vivê-la - como uma necessidade física, uma obrigação instintiva (por
paradoxal que isso seja).
Há não muito tempo, sabe-se que a maternidade era não mais do que um
fenômeno de ordem fisiológica e social, não implicando inevitavelmente
um apego indissolúvel da mãe pelos filhos - e vice-versa. O mesmo vale
para a instituição (para muitos não mais do que
burguesa-católica-consumista) chamada casamento. Atualmente, poucos
parecem se dar conta de que, por trás - e por dentro, pelos lados, por
fora - dessa união hiperidealizada como fusão amorosa, existe um
espectro tão articulado de conveniências sociais, econômicas e políticas
que ninguém deveria se surpreender com o já quase imperioso "fim do
amor".
No livro "Fracassou o Casamento por Amor?", de Pascal Bruckner,
chega-se a sugerir, como resposta à dicotomia amor total ou separação
(quase sempre litigiosa, justamente pela expectativa de totalidade), uma
espécie de "amor suave", em que os parceiros gradualmente construíssem
uma relação calcada em valores como amizade, afinidades e compreensão
mútua, mais do que em paixão e sexo.
O sexo e a paixão eternas como "imperativos categóricos" do casamento
são praticamente profecias autoanunciadas de fracasso. Daí ao
surgimento das indústrias já conhecidas de fármacos, terapias, livros de
autoajuda, brinquedos eróticos e afins como curas (quase sempre
paliativas) para o cumprimento dessa obrigação amorosa, é somente um
passo que, novamente, leva o casal a nova sensação de fracasso.
Por que não associar o amor à sua sinonímia contígua, pensando em
palavras como amável, amigo, amador, amabilidade e namoro? Por que
sempre, ao menos no caso do casamento, se associa o amor somente a
amante e amado? Por que, na acepção idealizada e já anacrônica de
casamento, o amor permanece como um fetiche inviolável, um tipo de
liberdade forçada?
"O divórcio é o deus tutelar do hímen, pois o faz gozar de paz
inalterável e felicidade sem nuvens" - frase genial de Olympe de Gouges,
citada no livro e proferida durante a Revolução Francesa por um
entusiasta do feminismo e inimigo da Igreja Católica. Mesmo o divórcio,
essa outra instituição tão festejada quanto o casamento e tão celebrada
pelas feministas, teve sua história de conveniência política. Mas ele é,
sem dúvida, uma perspectiva sempre possível, que, supreendentemente,
pode até, segundo o autor, fazer o casamento durar um pouco mais.
Recentemente, soube da história de uma criança, que, vivendo desde
bebê com pais separados, e sempre passando alguns dias com o pai e
outros com a mãe, deu um berro, ao ver, num álbum de fotografias, uma
imagem da mãe junto do pai: "Mamãe, você e papai se conhecem!" Outros
filhos de amigos casados reclamam que seus pais, como os dos
coleguinhas, não sejam separados, o que os poria em situação de
desvantagem.
Talvez uma possibilidade de sobrevivência para o casamento por amor -
uma conquista da civilização pós-iluminista - seja lentamente
liberar-se do ideal romântico de experiência fusional que, como todo
ideal, serve muito mais para a realização narcísica do que para a
realidade.
"Fracassou o Casamento por Amor?"
Pascal Bruckner. Trad.: Jorge Bastos.
Difel, 108 págs., R$ 30,00
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*Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está Acontecendo" (Martins Editora)E-mail: noejaffe@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 13/12/2013
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