sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

AINDA EXISTE CASAMENTO POR AMOR?

 Noemi Jaffe*
 Andrea Riseborough e James D'Arcy são Wallis Simpson e Eduardo VIII, que renunciou 
ao trono para casar-se por paixão, no filme "W.E."

Como a roda, o amor é também uma invenção. Só que, mais ainda do que a roda, esta segunda invenção se tornou tão naturalizada que poucos a entendem como uma construção cultural, tendendo mais a considerá-la - ou vivê-la - como uma necessidade física, uma obrigação instintiva (por paradoxal que isso seja).

Há não muito tempo, sabe-se que a maternidade era não mais do que um fenômeno de ordem fisiológica e social, não implicando inevitavelmente um apego indissolúvel da mãe pelos filhos - e vice-versa. O mesmo vale para a instituição (para muitos não mais do que burguesa-católica-consumista) chamada casamento. Atualmente, poucos parecem se dar conta de que, por trás - e por dentro, pelos lados, por fora - dessa união hiperidealizada como fusão amorosa, existe um espectro tão articulado de conveniências sociais, econômicas e políticas que ninguém deveria se surpreender com o já quase imperioso "fim do amor".

No livro "Fracassou o Casamento por Amor?", de Pascal Bruckner, chega-se a sugerir, como resposta à dicotomia amor total ou separação (quase sempre litigiosa, justamente pela expectativa de totalidade), uma espécie de "amor suave", em que os parceiros gradualmente construíssem uma relação calcada em valores como amizade, afinidades e compreensão mútua, mais do que em paixão e sexo.

O sexo e a paixão eternas como "imperativos categóricos" do casamento são praticamente profecias autoanunciadas de fracasso. Daí ao surgimento das indústrias já conhecidas de fármacos, terapias, livros de autoajuda, brinquedos eróticos e afins como curas (quase sempre paliativas) para o cumprimento dessa obrigação amorosa, é somente um passo que, novamente, leva o casal a nova sensação de fracasso.

Por que não associar o amor à sua sinonímia contígua, pensando em palavras como amável, amigo, amador, amabilidade e namoro? Por que sempre, ao menos no caso do casamento, se associa o amor somente a amante e amado? Por que, na acepção idealizada e já anacrônica de casamento, o amor permanece como um fetiche inviolável, um tipo de liberdade forçada?

"O divórcio é o deus tutelar do hímen, pois o faz gozar de paz inalterável e felicidade sem nuvens" - frase genial de Olympe de Gouges, citada no livro e proferida durante a Revolução Francesa por um entusiasta do feminismo e inimigo da Igreja Católica. Mesmo o divórcio, essa outra instituição tão festejada quanto o casamento e tão celebrada pelas feministas, teve sua história de conveniência política. Mas ele é, sem dúvida, uma perspectiva sempre possível, que, supreendentemente, pode até, segundo o autor, fazer o casamento durar um pouco mais.

Recentemente, soube da história de uma criança, que, vivendo desde bebê com pais separados, e sempre passando alguns dias com o pai e outros com a mãe, deu um berro, ao ver, num álbum de fotografias, uma imagem da mãe junto do pai: "Mamãe, você e papai se conhecem!" Outros filhos de amigos casados reclamam que seus pais, como os dos coleguinhas, não sejam separados, o que os poria em situação de desvantagem.

Talvez uma possibilidade de sobrevivência para o casamento por amor - uma conquista da civilização pós-iluminista - seja lentamente liberar-se do ideal romântico de experiência fusional que, como todo ideal, serve muito mais para a realização narcísica do que para a realidade.

"Fracassou o Casamento por Amor?"

Pascal Bruckner. Trad.: Jorge Bastos. 
Difel, 108 págs., R$ 30,00
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*Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está Acontecendo" (Martins Editora)
E-mail: noejaffe@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 13/12/2013

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