É sentado na cadeira preferida por Fernando
Pessoa, no café Martinho da Arcada, em Lisboa, que o compositor e cantor
italiano, Mariano Deidda, divaga com o Expresso por dez anos de união
da sua música à obra literária pessoana. "Mensagem", apresentada no III
Congresso Internacional de Fernando Pessoa, que decorreu em Lisboa no
final de novembro, é mais um dos seus trabalhos dedicados à metamorfose
da literatura do poeta. Entre versos e acordes, Deidda, revela "o código
do futuro de Portugal" que, diz, vai ajudar a sair da crise. O seu
trabalho é composto de 44 poemas, que afirma essenciais para enfrentar o
futuro em Portugal.
O que é que Pessoa nos ensina perante a crise?
São 44 poesias para ser lidas e interiorizadas, porque
dentro delas está o código do futuro para Portugal. Só uma pessoa jovem
pode descodificá-lo. Acredito que sobretudo uma poesia chamada "Os
Colombos" tem a chave para um futuro próximo: "Outros haverão de ter/ O
que houvermos de perder./ Outros poderão achar/ O que, no nosso
encontrar,/ Foi achado, ou não achado,/ Segundo o destino dado". Estas
linhas são o código para o futuro da sociedade. Cada um de nós tem de
fazer a sua parte. Nos anos 60 e 70 era o Estado que construía. Hoje, o
Estado não existe. Temos de o fazer nós, e precisamos de pessoas
inteligentes para isso. A palavra fundamental é a competência. A nossa
sociedade é muito sofisticada e o futuro será belíssimo, estou seguro.
Mas para isso é necessário que haja essa mudança de mentalidades...
A tecnologia ajuda muito. Há 50 anos, as pessoas
trabalhavam no carvão, hoje temos satélites que trabalham para nós. É
perfeito, porque um satélite raramente falha. O homem falha muito mais.
Esta mudança só se pode dar com uma geração culturalmente desenvolvida e
são poucas as pessoas incultas. Daqui a 20 anos serão menos ainda e
quem não usar a cabeça, é excluído do jogo da vida.
Num mundo em que, como diz, são cada vez menos
pessoas a trabalhar com as mãos e é privilegiado o trabalho "com a
cabeça", qual o papel das artes e do belo?
Com a cabeça ou com a fantasia. É necessário talento e
imaginação. Até para organizar um supermercado é preciso ser original.
Tal como quando um engenheiro constrói uma metrópole, tanto precisa de
inteligência como de imaginação. Porque é necessário que esta seja
confortável mas também bela. Eu penso que a crise que atravessamos é,
por um lado, económica, mas sobretudo uma crise de ideias. As pessoas
têm medo de fazer coisas diferentes e só pensam no que não têm, porque o
primeiro pensamento está no materialismo. O belo e a arte tem um papel
muito importante. Até uma horta de um agricultor é uma obra de arte. O
essencial é fazer, inventar. A mensagem de Einstein presente no meu
álbum aborda isso mesmo.
Porque decidiu incluir essa citação no álbum?
Porque a "Mensagem" é isso. No fundo, o significado das
44 poesias, é resumido nessa citação. A mensagem de Einstein diz-nos
que a crise acontece quando as pessoas chegam a um nível de vida mais ou
menos estável, acreditando que têm tudo o que precisam. Mas a sociedade
muda e nós ficamos desorientados.
"Mensagem" é o quinto disco que compõe em torno da poesia de Fernando Pessoa. O que o faz voltar constantemente a este poeta?
A universalidade da sua escrita. Fernando Pessoa foi um
futurista e é difícil encontrar uma escrita tão moderna. Há poemas que
se projetam muitos anos à frente do tempo em que ele viveu. Acredito que
o expoente máximo deste autor não está no nosso tempo, mas está ainda
por vir.
A "Mensagem" é para si uma espécie de Bíblia de ensinamentos?
Sim, porque Fernando Pessoa escreveu sobre todas as
coisas relacionadas com a vida. Passando pela psicanálise, esoterismo,
escreveu também quadras populares para fazer rir. Foi todas as coisas.
E também foi todas as pessoas, desdobrando-se em vários heterónimos...
Pessoa tinha poucos amigos. Inventou-os, porque naquela altura haviam poucos homens culturalmente altos.
Como lhe surgiu a ideia de unir a literatura de Fernando Pessoa à música?
Primeiro é preciso ler. Antes de musicar os poemas de
Pessoa, havia já lido a sua obra durante muitos anos. Comprava discos de
outros cantores e as palavras ficavam pobres. Faltava conteúdo. Então,
pensei em Fernando Pessoa e na sua obra vasta e universal. Comecei há
dez anos. É um projeto inovador, porque junta a música à literatura e
pouca gente o faz. Existem alguns músicos portugueses a fazê-lo, mas
pontualmente. Alguns adulteram as letras para conseguirem a métrica
perfeita.
E o mariano não o faz...
Não, toda a poesia inteira, exatamente como escreveu
Fernando Pessoa. A tradução é obra de António Tabucchi, que morreu o ano
passado. É uma pena não ter aqui uma foto dele [olha para as paredes do
Martinho da Arcada], que este é o café de Pessoa, mas também dele.
Foi a partir do escritor que teve acesso à poesia de Fernando Pessoa...
Sim, fui muito amigo de António Tabucchi, no meu
concerto do III Congresso Internacional de Fernando Pessoa, no Teatro
Aberto, em 3 dias, eu fui o único a lembrar a morte dele. Levantamo-nos
todos para o homenagear com muitas palmas, mas eu fui o único a
lembrá-lo. Se pessoa cresceu muito no mundo, é também pelo mérito de
António Tabucchi.
Sente que o seu trabalho é mais bem recebido em Portugal ou em Itália?
É um paradoxo, mas, penso, que em Portugal. Eu sou
estrangeiro, mas trabalho com o poeta mais importante do país. Em Itália
nós adoramos Pessoa. E não só em Itália. Eu tenho o pressentimento de
que Portugal não tem ideia do valor deste poeta no mundo. Ele inventou
algo totalmente novo: os heterónimos. Há muitos, dentro da arca há 70 ou
80, cada um com uma caligrafia diferente.
Tem algum heterónimo de estimação?
O mestre, Alberto Caeiro. Mas também gosto muito de
Álvaro de Campos. E claro, o poema que diz: "Não sou nada./ Nunca serei
nada./ Não posso querer ser nada./ À parte disso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo." Basta colocar esta frase no contexto da crise. Temos
tudo em nós. Basta ligar a cabeça, como quem liga um interruptor da luz.
Iluminar. Porque o homem é uma máquina perfeita e pensar que entramos
em crise porque temos poucos recursos económicos é um erro. O ser humano
conquistou imensas coisas e perdê-las leva-o à loucura. Já não
conseguimos viver sem o telemóvel. A conquista da tecnologia é esta.
Para além disso, entrámos num ciclo vicioso em que os que perdem o
trabalho são os mesmos que o tiram aos outros. Por exemplo, quem não tem
dinheiro para comprar CD, tira a música da internet sem pagar. Eu, que
sou músico, faço isso. O mesmo se passa com a crise do cinema. Ou, por
exemplo, quando encomendamos um voo pela internet. Isso gera desemprego,
e cada um de nós contribui um pouco para a crise.
Como artista, o que sugere para solucionar esse ciclo vicioso, de forma a que a arte tenha o lucro necessário para funcionar?
São as indústrias culturais que dão o dinheiro para
investir em discos como o meu, e a partir daí pode correr bem ou não. Um
jovem artista precisa apostar na qualidade e novidade do projeto. Estas
são duas componentes essenciais.
Mas quando o Estado não investe na cultura, os artistas não podem evoluir, ou então têm de emigrar...
O Estado não investe na cultura, e por isso é
necessário que toda a gente a reivindique. Por exemplo, estou aqui no
café e se o empregado me disser que posso escolher entre um café ou um
bolo, eu digo: não, quero isto! [aponta para "A Mensagem" em cima da
mesa] Isto é cultura. Toda a gente deveria fazer deste modo. Quando o
Estado mostra talkshows e telenovelas na televisão, podemos desligar e
dizer: não quero ver isto. Eu quero um filme, eu quero um bom
espetáculo, uma boa leitura.
A crise, como disse, não é apenas económica, mas quando existe uma crise económica as pessoas tendem a abstrair-se da cultura...
Todas as coisas devem partir de nós. O povo é que faz
uma nação. Quantas vezes se faz uma greve para pedir cultura? É raro, e
são os estudantes que vemos nas ruas. As outras pessoas não pedem
cultura porquê? Querem o Ronaldo? O Ronaldo cria algum avanço na
economia, mas a cultura verdadeira é mais necessária.
Para o futuro, que projetos tem em mente?
Estou a pensar fazer um quinto álbum ligado a Pessoa.
Estou a trabalhar nisso. Isto porque, um dia, António Tabucchi pediu-me
para não parar com este projeto. E também porque sou o único no mundo a
ter um trabalho tão vasto sobre um poeta. Tenho quatro discos em
estúdio e um ao vivo, só para Pessoa. É muita literatura.
O meu primeiro disco foi com palavras minhas. Parei
aí. Há muitas palavras lindíssimas neste livro ["Mensagem"], não preciso
inventar.
Fonte: http://expresso.sapo.pt/06/12/2013
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