Paulo Ghiraldelli*
- Cioran -
(...)
Considerando o que Durkheim e Weber
disseram da modernidade, e levando em conta a questão da sensibilidade, o
diagnóstico não parece ser promissor. Uma ética profissional, como
Durkheim propugnou para a modernidade, seria o campo ideal para as
pessoas serem sensíveis? Por tudo que nós passamos no trabalho
profissional, mesmo considerando aqueles que estão “em sua vocação”,
seja lá o que for isso, é difícil responder positivamente a essa
pergunta. Viver com o coração livre, porém à beira de um abismo vazio,
seria a fórmula melhor para, enquanto modernos, sermos sensíveis? Weber
colocou essa alternativa e, ele mesmo, considerou-a inóspita.
Mas, se é assim, então nós, já há muito
tempo pessoas modernas, como ainda falamos em sensibilidade? Ou estamos
apenas falando de uma palavra vazia, sem qualquer correspondência em
atitudes? Talvez sejamos todos zumbis elegantes, andando pelas ruas sem
qualquer indício da horrível aparência descarnada, mas efetivamente
zumbis. Abrimos o dicionário e lá encontramos uma dúzia de
possibilidades. Elas começam pelo ser vivo e pelo homem e terminam pela
máquina. O homem sensível tem a ver com sensação e sentimento. A máquina
tem a ver com sensibilidade em termos de quantidade do que a afeta,
luz, por exemplo. A modernidade parece deixar os dicionários ainda com a
palavra sensibilidade funcionando, mas de um modo puramente
quantitativo. Alguém sensível seria, então, se plenamente moderno,
alguém afetável por algo externo ou interno, mas de uma forma a jamais
ter no horizonte aquilo que seria, em filosofia, o desespero de Cioran,
por exemplo.
Cioran soube dizer em que ponto nós
teríamos de cortar as doze possibilidades do termo “sensibilidade” no
nosso dicionário. Isso porque ele talvez tenha sido um daqueles últimos
homens sensíveis. Alguém que soube, com sinceridade, dizer coisas como
“ao notar a miséria, envergonho-me até de existir a música”. Não nego
que outros homens foram sensíveis assim. Adorno disse tudo sobre isso
quando afirmou que não poderia haver poesia após Auschwitz. Mas, diante
do diagnóstico da modernidade feito pelos clássicos da sociologia, que é
um seu retrato cuidadoso, tenho de admitir a excepcionalidade de
pessoas capazes de saberem exatamente o que é ter e sentir esse
pensamento de Cioran, sobre a vergonha da existência da música, ou o de
Adorno, sobre a inibição da arte após a barbárie. Arte é gênio e gozo.
Quem poderia gozar sem culpa ou sem desrespeito após termos a miséria e a
barbárie?
No diagnóstico da modernidade, ou pelo
profissionalismo ou por uma subjetivação específica, acabamos por
realizar aquele ideal de Sade, que ele nunca achou que seria possível de
ser alcançado, e que Adorno chamou de “a feliz apatia”. O que é uma
feliz apatia: é a felicidade que não se sente. É a tristeza que não se
sente. Pois tudo está diante do império da apatia, o a-pathos. Tudo
toca sem tocar o homem. O mais atroz sofrimento não toca o outro. A
mais exuberante felicidade é falsa. O que é pior que o tédio vampiriza o
mundo.
O problema disso tudo é que a
modernidade nos fez pessoas insensíveis e, no entanto, não nos tornou
pedras. Ninguém é “frio como uma pedra”. No entanto, todos nós somos
insensíveis naquele sentido que Sade queria que fôssemos para sermos
senhores de si mesmos e do mundo.
Se a minha sensibilidade está restrita
ao meu fazer profissional e ao meu coração aparentemente cheio, mas, na
verdade, vazio e solitário, ou vazio porque solitário, como que a
palavra sensibilidade ainda está nos dicionários? Posso ser bombardeado
por pornografia e por imagens sublimes e por mil dados computacionais ao
mesmo tempo. Posso! Posso, mas por ser seletivo ou por ser efetivamente
insensível? Essas duas coisas, na modernidade, não vieram juntas? Não
sou um bom técnico que tudo aprende à medida que sou um sensível
insensível?
Haveria uma teoria filosófica que
pudesse descrever o homem como aberto à modernidade e, então,
crescentemente insensível, mas ao mesmo tempo tendo algum germe de
sensibilidade, para que, então, ainda pudéssemos nos descrever como
homens e não como zumbis? É aí que entra a descrição feita por Peter
Sloterdijk. Mas isso é assunto para outro dia.
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* Filósofo. O texto completo pode ser lido aqui: http://ghiraldelli.pro.br/pensamento-social-filosofia-e-modernidade/15/12/2013
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