domingo, 15 de dezembro de 2013

UMA CONVERSA COM DEUS

 José Tolentino Mendonça*
 

 O mistério revela-se para lá de qualquer conhecimento, para lá mesmo de qualquer ignorância. Guarda isto para ti: há um momento decisivo em que a experiência crente se constrói necessariamente num intransigente, desconcertante e ardente oximoro, que é a sua figura por excelência: a fé é sede que dessedenta, fome que sacia, vazio que enche de plenitude, escuridão que brilha. Só mãos estendidas e vazias se avizinham ao mistério. (…) Não se esqueçam que todo o coração é uma soleira, uma porta entreaberta. O grande obstáculo não é a fragilidade, mas a rigidez. Não é a vulnerabilidade, mas o seu contrário: o orgulho, a autossuficiência, a autojustificação, o isolamento, a violência, o delírio de poder. «Os homens quando nascem são tenros e frágeis. A morte torna-os duros e rijos. As ervas e as árvores quando nascem são tenras e frágeis. A morte torna-as esquálidas e ressequidas. O duro e o rígido conduzem à morte. O fraco e o flexível conduzem à vida.

Conversando com Deus não se dá pelo tempo... 

Como é que Deus se pode contar? Se é que se pode contar...
Falem de mim por aquilo que vos está mais próximo, é a melhor maneira Oiçam as crianças e os poetas. Oiçam as montanhas, os oceanos. Oiçam as árvores e as folhas de erva. Um poeta escreveu: 

«Creio que uma folha de erva não vale menos do que a jornada das estrelas,
E que a formiga não é menos perfeita...
E que o sapo é uma obra-prima para o mais exigente,
E que a vaca ruminando com a cabeça baixa supera qualquer estátua,
E que um rato é milagre suficiente para fazer vacilar milhões de infiéis». 

Ele tem razão. 

Mas falar de Deus assim, dessa forma tão próxima, também confunde...
Gosto de observar a vossa irrequíetude. Nada vos parece suficiente. Nada serve como definitivo. Pergunto-me, por vezes, se isso é defeito ou feitio. 

E chega a alguma conclusão?
(Rindo-se) Uma das vantagens de ser Deus é não precisar de chegar a sítio algum, porque já estou em toda a parte. 

Vê, essas facilidades dificultam-nos a compreensão. Os filósofos escolásticos ensinavam que enquanto nós somos existências, Deus é essência. É uma definição árdua, nem conseguimos bem imaginar o que seja.
Mas eu venho ao vosso encontro. O profeta Isaías lembrou a meu respeito: «Faço-me encontrar por quem não me procura». A verdade é que não me conheceríeis se não tomasse a iniciativa de procurar-vos. A sede que sentem sou eu quem a desperta A vossa fome de silêncio e de encontro. A vossa carência de absoluto, o vosso desejo de amor... 

Mas continua a separar-nos um abismo... Não podemos dar um passo nessa direção. Não se caminha verticalmente.
E se lessem isso de forma positiva? Sou e serei para vós uma pergunta infinita, um assombro interminável. Os místicos optam por bom caminho quando recomendam: «Sossega, para onde corres? - O Céu está em ti, procurar Deus noutro lugar, é nunca o alcançar». Ou então: «Sossega, para onde corres? - o Céu está em ti!...»

Em nós? Muitas vezes sentimo-nos traídos nas nossas expectativas.
A religiosidade natural remete o homem para o divino através da necessidade: o homem precisa de um Deus que lhe seja útil, que tenha poder, que o proteja. Rapidamente, fico :reduzido a um ídolo, que serve para garantir um funcionamento favorável do grande sistema do mundo. Esse é um entendimento mágico. 

Mas o sofrimento dos inocentes, os campos de extermínio, as experiências de mal... Não deveríamos aí contar com Deus do nosso lado?
Num dos seus romances, Elie Wiesel conta uma execução num campo de concentração. Chamaram uns quantos inocentes e colocaram-nos arbitrariamente perante o pelotão de fuzilamento. E alguém não resiste e diz baixinho, entre os dentes: «Onde estás, ó Deus?" E terá ouvido a voz sussurrada de um companheiro que lhe garante: "Deus está ali mesmo, entre os fuzilados.»

Mas então como é que nos salva?
Quero citar um dos testamentos espirituais mais inspiradores do século xx, assinado por Etty Hillesum, onde ela escreveu: «Torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu, ó Deus, não nos podes ajudar, mas nós é que temos de ajudar-te, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós. Sim, meu Deus, quanto às circunstâncias ... é evidente que fazem parte indissolúvel desta vida Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E, a quase cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos podes ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós, onde tu resides, tem de ser defendida até às últimas.»

O que diz é um escândalo.
Talvez seja, sim.

E...
A luta contra o Mal é possível e necessária, e ela passa pela afirmação última do plano divino. É preciso trabalhar infatigavelmente a possibilidade da Esperança 

Mas como fazer isso?
Perante o Mal há tantas coisas que se desconhecem, para as quais não há uma explicação, nem ninguém a pode dar. Mas será que para o Bem tendes respostas? Não é ele também um enigma e um enigma aínda maior? Tome-se o livro bíblico de Job. Job está cheio de razões, num protesto aparentemente justíssimo contra mim. E o que lhe digo é de todo inesperado: «Repara no hipopótamo que criei como a ti. É a obra-prima de Deus.» Ao mandar Job olhar para o hipopótamo, pretendi abrir o seu olhar, escancará-lo a tudo o que é grande e imenso, a tudo o que o que vos escapa, mostrando-lhe que se o Mal não tem resposta, o Bem menos ainda. O amor e o espanto, o riso e o dia, a alegria e a dança são sem porquê. Porque fazemos então depender tudo de uma resposta para o Mal se o Bem é igualmente um mistério, e um mistério infinitamente maior? 

Teremos de aprender a amar sem ser por nada?
«A rosa não tem porquê./ Floresce porque floresce.» Teresa de Lisieux dizia-me: «Ainda que não houvesse paraíso eu continuaria a amar-te, ó Deus». Há que ultrapassar uma determinada conceção da religião entendida como uma máquina de fabricar recompensas e castigos. 

Estes dias perguntei a um amigo se queria dirigir-lhe alguma questão e ele atirou esta: Deus, porque é que não existes?
Diz-lhe que o entendo bem Será sempre difícil falar de Deus e isso é bom.

Pode explicar?
Deus permanece em vós e o seu amor torna-se visível, mas também a Deus nunca ninguém o viu. 

Continuo sem perceber...
Não sou manipulável, domesticável por discursos e representações. 'Tanto crentes como não-crentes, bebem o silêncio de Deus nas próprias mãos. Estou sempre a escapar-vos, sou sempre outro para lá do vosso conhecimento. 

Mas os crentes dizem tanta coisa...
E podem efetivamente dizer alguma coisa. Mas esse conhecimento é ainda insuficiente, já que a realidade transcendente é irredutível a qualquer sistema de pensamento. O mistério revela-se para lá de qualquer conhecimento, para lá mesmo de qualquer ignorância. Guarda isto para ti: há um momento decisivo em que a experiência crente se constrói necessariamente num intransigente, desconcertante e ardente oximoro, que é a sua figura por excelência: a fé é sede que dessedenta, fome que sacia, vazio que enche de plenitude, escuridão que brilha. Só mãos estendidas e vazias se avizinham ao mistério. 

As nossas mãos podem tocar Deus alguma vez?
Recordo-me da oração que uma personagem de um romance de Clarice Líspector faz, de joelhos, ao pé da cama: «Alivia a minha alma, faz com que eu sinta que Tua mão está dada à minha.. , faz com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me ama... amém" Isso acontece continuamente.»

O que é a fé?
A verdade não é algo externo, para descobrir com proposições frias e impessoais, mas algo que experimentais no vosso interior, de maneira pessoal. O que é a fé? Apenas isto: tratar a Deus por tu. Deixar de falar de mim na terceira pessoa e falar comigo na segunda, como presença que tens diante de ti. 

Onde é que mora?
(Rindo) Moro onde me deixam. Há aquele homem que na sua oração me pede que fosse a sua casa! «Gostava que viesses a minha casa.» Eu respondi: «Está bem Amanhã irei a tua casa.» O homem saiu imediatamente, arrumou, dispôs, virou, iluminou, poliu a sua casa, abriu as janelas de par em par e, desde a aurora, colocou-se à entrada da casa. Sabia lá ele quando é que Deus viria! Estava assim sentado quando, logo de manhãzinha, veio um peregrino que caminhou a noite toda, as sandálias sujas de lama, e vinha já a subir. Ele diz-lhe: «Alto!»
«Dá-me abrigo.» «Não posso.»
«Mas porquê? Tens o dever de acolher um peregrino.»
«Não quero. Hoje a minha casa é uma casa que Deus vai visitar.» E o peregrino foi bater a outro lado.
A meio da manhã, aproximou-se sorrateiro um miúdo que viu umas belas maçãs colocadas em cima da mesa posta e, pela janela, esticou um braço para tentar apanhar uma O homem apanha-lhe o braço com vigor, e diz-lhe: «Mas, então?»
«É só uma!»
«Não pode ser; estas maçãs são para Deus que hoje me visita»
Passaram umas horas e veio um irmão dele, de longe; um irmão que ele amava e queria ficar em sua casa, mas ele mandou-o embora, porque naquele dia estava à espera de Deus.
E quando chegou o crepúsculo, o homem sentiu-o como o mais duro da sua vida, porque eu tinha-lhe prometido uma visita E ele esteve à espera desde a aurora! Como ia ele agora encarar a noite, mais escura do que nunca? Então ajoelha-se e chora toda a sua desilusão. «Como é que me prometeste e não cumpriste? Porque é que me disseste que me visitarias?»
Mas tive de responder-lhe:
«Por três vezes, hoje, tentei visitar-te e todas as vezes me disseste que não.»

 "Que, como diz o poeta, que cada um viva «por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,/ 
e ser possível tudo ser reencontrado 
por dentro do amor».


Se dissermos que Deus é amor, ninguém se espanta. Mas às vezes precisaríamos de dizer que Deus é humor.
Talvez tenham de levar mais a sério aquilo que o Salmo segreda: «O que habita nos Céus, sorri.» Por mim, digo que me revejo na imagem do Livro do Provérbios (Prov. 8,30-31) que apresenta assim a sabedoria que emano: «A sabedoria divina está constantemente a brincar: a brincar na terra e a alegrar-se com os homens.» Não é no conjunto de tarefas tradicionalmente ligadas à sabedoria (julgar, pensar, escrutinar, prever...) que encontrareis a sabedoria de Deus. É infinitamente mais simples o meu programa: brincar, alegrar-me na vossa companhia.

Então Deus sorri?
Há um provérbio árabe que diz isso: «Quando o homem pensa Deus sorri.»

Mas isso não será outra vez fazer pesar sobre os humanos a sua insignificância?
É precisamente o contrário. O que caracteriza a alegria é o facto de ela não nos pertencer. É pessoalíssima, é completamente nossa, identifica-se connosco, mas não nos pertence. A alegria atravessa-nos, mas é sempre um dom. Até a alegria de Deus. Não posso, por exemplo, dizer: daqui a um minuto vou-me rir. Não sei quando é que me vou rir. A alegria é um dom na surpresa do encontro. 

Mas há ou não obstáculos para chegar a Deus?
Não se esqueçam que todo o coração é uma soleira, uma porta entreaberta. O grande obstáculo não é a fragilidade, mas a rigidez. Não é a vulnerabilidade, mas o seu contrário: o orgulho, a autossuficiência, a autojustificação, o isolamento, a violência, o delírio de poder. «Os homens quando nascem são tenros e frágeis. A morte torna-os duros e rijos. As ervas e as árvores quando nascem são tenras e frágeis. A morte torna-as esquálidas e ressequidas. O duro e o rígido conduzem à morte. O fraco e o flexível conduzem à vida.»

O que é realizar um caminho espiritual?
A palavra-chave é «relação». Pois o que é a aventura espiritual senão isto mesmo: a construção inacabada e criativa que a vida faz da relação? Talvez tenhamos para isso de aprender a desaprender. Desaprender os labirintos, as teias, os modelos que sufocam e apenas servem para fazer adiar o encontro. 

O que é a confiança?
Lembro-me daquela história oriental: «Um discípulo foi ter com o seu professor de meditação, cheio de tristeza, quase a desistir, e confessa-lhe: «A minha prática de meditação é um fracasso! Ou me distraio completamente, ou as pernas me doem, ou me entrego ao sono .»
«Isso passará», disse o mestre suavemente.
Uma semana depois, o mesmo estudante voltou à presença do mestre, mas agora eufórico:
«A minha prática de meditação tornou-se maravilhosa! Sinto-me tão vigilante e tão pacificado. É simplesmente extraordinário.»
O mestre respondeu-lhe com a mesma tranquilidade: «Isso também passará».

Deus é um nome invulgar. Que significa esse nome?
Será que tenho um nome?

Qual é a vontade de Deus?
A minha vontade é o amor. Que, como diz o poeta, que cada um viva «por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,/ e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor».

E como desejaria que falássemos de si?
Que eu espero por todos e não abandono nunca ninguém.

Há vida depois da morte?
Há vida antes da morte?

Nota do autor: Quando me desafiaram a fazê-lo, comecei a construir imediatamente uma estratégia: iria falar das conversas de outros com Deus. Na tradição mística, por exemplo, abundam colóquios, êxtases, arrebatamentos, visões... O meu plano era falar disso, escondendo-me confortavelmente atrás desses exemplos. Mas percebi depois que não tinha qualquer saída, pois esperavam que este texto fosse construído com perguntas e respostas. A única coisa que considerei então sensata foi arquitetar um texto em que as perguntas fossem respondidas dando lugar a perguntas maiores. Foi o que tentei e não sei se consegui. É mais fácil conversar com Deus sem outros ouvidos a ouvir.
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* José Tolentino Mendonça é teólogo, escritor e poeta português.
InExpresso, 14.12.2013
14.12.13
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