segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A reinvenção da América Latina

 Luis Hernández Navarro (*)

Arquivo

Se até agora sua inserção com o resto do mundo esteve condicionada pela presença das potências imperiais, com o novo século começou a trilhar outro caminho

Em 1958, o historiador mexicano Edmundo O’Gormam publicou um livro intitulado La invención de América, com o qual sacudiu a historiografia dedicada a documentar e explicar o descobrimento e a conquista americana. Inventar, significa, de acordo com o dicionário da Real Academia da Língua, achar ou descobrir algo novo ou não conhecido.

Em seu texto, O´Gormam explica, de maneira nova para seu tempo, a forma em que o relato sobre a história e o devenir do “novo continente” foi construído. Hoje, retomando essa imagem, podemos dizer que América Latina está se reinventando.

O conceito América Latina tem por trás de si uma longa história. Muitos anos antes de que O’Gormam publicasse sua obra, em 1857, o escritor colombiano José María Torres escreveu em seu poema Las dos Américas as chaves do novo imaginário regional: “Mais isolados se encontram, desunidos/Esses povos nascidos para aliar-se:/A união é seu dever, sua lei amar-se:/Igual origem têm e missão; /A raça da América latina, /A frente tem a saxã raça, /Inimiga mortal que já ameaça”.
Pouco antes, em 1856, o filósofo chileno Francisco Bilbao, havia usado, durante uma conferência, o mesmo termo.

A região está em um processo de reinvenção porque sua visão de si mesma, seu destino como território e sua relação com as grandes potências, especialmente com os Estados Unidos, está se transformando radicalmente. Se, até agora, sua inserção com o resto do mundo esteve condicionada pela presença das potências imperiais (Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Estados Unidos), com o novo século começou a construir-se como um conglomerado de nações com processos de integração crescentemente soberanos.

Trata-se de um processo complexo, ambíguo, em algumas ocasiões contraditório, que não avança em linha reta, no que nem tudo está definido e cujo destino final não está ainda escrito. Um processo no qual suas riquezas naturais, como a abundância de água doce (cerca da metade do planeta), suas reservas de petróleo e gás, seus recursos minerais e a riqueza de sua biodiversidade, desempenham um papel central.

Como sinais distintivos dessa reinvenção se encontram, entre outras, a refundação de vários Estados nacionais a partir de Assembleias Constituintes; a ruptura com o Consenso de Washington; a recuperação de sua soberania petrolífera, de seus recursos naturais e bens estratégicos; o pôr em prática de políticas de inclusão social, redistribuição da renda e reconhecimento da diversidade cultural; a existência de poderosos movimentos sociais emancipatórios, e a assinatura de acordos de integração regional guiados pela ideia da cooperação, a complementação econômica e a ajuda mútua.

Essa reinvenção da América Latina implica, obrigatoriamente, uma nova redefinição de seu lugar na orbe, no qual abandone seu lugar como “pátio dos fundos” dos Estados Unidos. Um novo papel internacional no que tem como ferramentas medulares, a construção de foros e entidades regionais sem a presença de Washington – Mercosul, Unasul, Alba e Celac – e a diversificação das relações econômicas, comerciais e tecnológicas com nações que, em outras zonas do planeta, fazem contrapeso geopolítico a Washington, como a China, a Rússia e o Irã.

O fim da Doutrina Monroe

O último dia 18 de novembro, na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), o secretário de Estado John Kerry, anunciou o fim da era da Doutrina Monroe e a decisão dos Estados Unidos de compartilhar responsabilidades com os outros países do continente e tomar decisões como companheiros no marco de uma relação de iguais.

Entretanto, tão logo como foi proclamado, esse suposto fim do velho enunciado colonialista redigido por John Quincy Adams e enunciado pela primeira vez pelo presidente James Monroe – A América para os americanos –, foi desmentido pelo chefe da diplomacia estadunidense. Contradizendo suas palavras, marcou a agenda de seu país para a região: promover a democracia, melhorar a educação, adotar novas medidas de proteção ambiental e desenvolver o mercado energético. E, emendando, criticou a os governos de Cuba e Venezuela.

O fim da Doutrina Monroe tem, como pano de fundo, uma perda relativa da influência de Washington na região, não como produto de uma decisão da superpotência, mas como resultado das lutas dos movimentos sociais e a eleição de governos progressistas que reivindicam a recuperação da soberania, a ruptura com o neoliberalismo e a integração latino-americana. Esses projetos modificaram o esquema de relação com os Estados Unidos.

Entretanto, esta mudança não implicou, nem muito menos, o fim do domínio estadunidense na região. O Império está muito longe de ser um tigre de papel. Apesar dos problemas que enfrenta em todo o mundo e do surgimento de novos eixos de poder, sua supremacia militar, o vigor de suas empresas e investimentos, sua capacidade para condicionar os fluxos comerciais a seu favor, a hegemonia semântica de suas indústrias culturais e a fortaleza de suas agroindústrias o convertem na única potência estratégica global.

Estados Unidos é o país com maiores gastos militares no mundo. Em 2011, seu orçamento para este ramo representou 40% dos gastos totais no planeta, seguido, muito de longe, pela China e pela Rússia. É, também, o principal fabricante e exportador de armamento. Este predomínio tem atrás de si uma poderosa base produtiva. Lockheed Martin, Boeing e BAE Systems lideram a indústria militar mundial. As duas primeiras são estadunidenses.

Seu poderio e superioridade bélica se complementam com as 827 bases militares no mundo, 27 delas na América Latina. Em abril de 2008, restabeleceu o funcionamento de sua IV Frota, responsável pelas operações no Caribe, América Central e América do Sul.

Apesar de suas dificuldades, a economia estadunidense continua sendo a de maior grandeza do planeta. Seu PIB nominal representa uma quarta parte do PIB nominal mundial. Das 500 maiores empresas do mundo, 133 têm sua sede nos Estados Unidos, o dobro do total de qualquer outro país. Por vendas, 8 das 10 principais companhias da orbe são estadunidenses; por valor, 9 de cada 10, por tecnologias da informação e comunicação, 3 das 4 primeiras. Este Império conserva, a pesar das relocalizações, um relevante e competitivo setor industrial, especializado em alta tecnologia, que elabora 20% da produção manufatureira da terra. Seu mercado financeiro é o maior.

Para a Casa Branca, a comunicação e as novas tecnologias associadas a elas foram, desde a década de 50 do século XX, assunto de Estado. Sabe-se que quem conduzir a revolução informática será quem disporá do poder no futuro. Os artigos culturais e de entretenimento são uma de suas principais geradoras de divisas. Sua presença ultrapassa a esfera exclusivamente mercantil: seus produtos vendem um estilo de vida, são parte de uma hegemonia semântica.

Os Estados Unidos são o maior exportador agrícola mundial e mandam a metade de seu trigo e soja e três quartos de sua colheita de algodão a compradores internacionais. A China é o principal destino das vendas neste terreno.

A presença de Washington na América Latina em todos estes ramos é notável. É o principal abastecedor de armas para a região, apesar da crescente exportação russa e chinesa. De longe, é a potência militar mais influente na área. É, também, o principal investidor estrangeiro direto. Todo tipo de empresas desse país faz negócios no hemisfério.

Apesar da crescente presença chinesa, os consumidores latino-americanos compram em seus países uma vasta variedade de mercadorias com o selo “Made in USA”. As exportações de automóveis, computadores, milho, trigo, séries de televisão, carnes, filmes, sucos e frutas congeladas, celulares, brinquedos, cosméticos, combustíveis e aeronaves não cessam. Dos 20 acordos de livre comércio que os Estados Unidos têm com diversos países no mundo, a metade deles foram firmados com nações latino-americanas e do Caribe. Em 2011, as exportações de produtos estadunidenses aos países deste sub-continente alcançaram 347 bilhões de dólares. O aumento de 54% nas exportações para a região, é maior que a taxa média de crescimento de exportações com o resto do mundo. Aproximadamente 85% dos bens que comercializa Washington entram livres de impostos no Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, México, Panamá e Peru.

Como se fosse pouco, como afirmou Juliam Assange, 98% das telecomunicações da América Latina até o resto da orbe passam pelos Estados Unidos, incluídos mensagens de texto, chamadas telefônicas, correios eletrônicos. Esse país tem à mão a informação de como se comporta a região, o caminho que seguem as transações econômicas, o comportamento e as opiniões dos principais atores políticos.

Ainda que formalmente declare o fim da Doutrina Monroe, seu intervencionismo na região é evidente, através de temas como o narcotráfico, o terrorismo e a migração, além de sua participação “discreta” em golpes brandos como os registrados em Honduras e Paraguai. Sua influência se faz sentir, também, na aposta pela Aliança do Pacífico, como contrapeso aos outros processos de integração da América Latina.

O dragão chinês

A atual bonança econômica da América Latina está estreitamente associada à entrada da China no hemisfério. O dragão asiático é um voraz consumidor dos alimentos, minerais, metais e combustíveis que se produzem na região. O investimento desse país foi central em permitir à área enfrentar sem grandes descalabros a recessão econômica de 2009.

A presença chinesa no hemisfério aumenta aceleradamente em todos os ramos: intercâmbios comerciais, investimentos diretos, financiamento e, inclusive, atividades culturais. Salvo um declive no crescimento ou graves conflitos políticos na nação asiática, nada parece indicar que esta tendência vá desaparecer.

Os investimentos da pátria de Mao Tse tung na América Latina aumentaram de 15 bilhões de dólares em 2000, para 200 bilhões em 2012. Em 2017 poderia alcançar a cifra de 400 bilhões. O volume de comércio deste país com o Brasil, o Chile e o Peru superou o que estas nações tiveram com os Estados Unidos. O gigante oriental foi, também, o segundo destino comercial da Argentina, Costa Rica e Cuba. Cerca de 40% das exportações agropecuárias da região vão para este país(1).

Os investimentos diretos da China na área em 2011 superaram os 8,5 bilhões de dólares. E, entre 2005 e 2011, concedeu empréstimos a países do hemisfério por 75 bilhões de dólares. Se trata de investimentos e empréstimos não condicionados à aceitação de dogmas de desenvolvimento, considerações ideológicas ou critérios estritamente políticos. Eles falam sempre de cooperação e apoio mútuo.

Segundo informa o periódico El País, a dependência da economia da América Latina com a China é tão grande, que a cada 1% que cresce o PIB no país asiático, aumenta 0,4% na região; a cada 10% que cresce o dragão asiático, se incrementam as exportações do hemisfério em 25%.

A crescente presença da China em uma área que tradicionalmente foi zona de influência estadunidense, não se topou com a animadversão de Washington. O Império tem tentado conter e administrar o impacto da potência oriental e circunscrevê-lo à esfera estritamente econômica. Por sua vez, Pequim tem atuado com cautela e tem deixado claro que sua intenção é ampliar suas fronteiras econômicas.

Entrevistado pelo El País, Daniel P. Eriksan, assessor do escritório para o Ocidente do Departamento de Estado dos Estados Unidos, disse, cauteloso, que a crescente economia do país asiático lhe obriga a procurar novos mercados, uma necessidade que também compartilha a América Latina pelos mesmos motivos.

O urso russo e as mineradoras canadenses

Impulsionada pelas crescentes vendas de armamento para a América Latina, a Rússia começou a redesenhar sua presença na região. Entre os quinquênios 1999-2003 e 2004-2008, as exportações de armamento do urso ao hemisfério cresceram em 900%. Se trata de seu novo mercado de produtos bélicos mais relevante. A Rússia abastece equipamento militar à região em melhores condições de pagamento e de entrega, também sem condicionamentos políticos. Com a Venezuela, realizou manobras militares conjuntas.

Seus negócios na região, entretanto, vão além desse assunto. O antigo império dos czares investe na área, também, em petróleo, metalurgia, moradia, hidroelétrica e fabricação de ônibus.

A principal carta de apresentação do Canadá na América Latina são suas empresas mineradoras. Segundo dados de 2008 as empresas canadenses controlam aproximadamente 37% da produção mineral. Atualmente estão ativas 286 empresas e 1500 projetos, ainda que nem todos em exploração (2). Todas elas deixaram um caudal de evasão fiscal, saqueio, contaminação massiva, problemas de saúde pública, corrupção, desapropriações, violência contra opositores.

O Canadá é a principal potência mineira do mundo. Cerca de 75% das mineradoras da orbe se registram no Canadá e 60% emitem suas ações na Bolsa de Valores de Toronto. Muitas delas são só formalmente canadenses porque, na verdade, são companhias com capitais australianos, suecos, israelenses, belgas e estadunidenses.

A legislação mineira canadense é flexível e em seu regime impositivo generosa com os investidores. Eles são favorecidos em seu financiamento e no terreno diplomático e jurídico. As empresas que cotizam na Bolsa podem pôr em valor potenciais jazidas. De fato, algumas tiram seus lucros da especulação na bolsa em torno de jazidas potenciais.

Em todos os países da América Latina no qual operam mineradoras canadenses a céu aberto se produziram severos conflitos comunitários. Essa é hoje a marca distintiva das relações estabelecidas entre a América Latina e seu outro vizinho do norte.

A América Latina está em um processo de reinvenção como hemisfério. Seu futuro não está ainda definido, seu destino final não está escrito. O hemisfério está redefinindo sua inserção no mundo.

Na última década, a região obteve ingressos extraordinários pela venda de matérias primas, e capitais para o investimento de valores, exacerbados por liquidez abundante alimentada pelos bancos centrais do mundo e taxas de juros historicamente baixas. Mas hoje, esse ciclo, aponta para seu fim. Por isso, sua reinvenção implica necessariamente, uma redefinição de sua inserção em um mundo multipolar, no qual modifique seu atual papel de provedor de matérias primas, que o coloca em uma situação frágil e vulnerável, para alcançar um tipo de indústria com tecnologia de ponta e o desenvolvimento das manufaturas, ao mesmo tempo que desenvolve seu mercado interno com equidade e justiça. Se não conseguir, seus sonhos de integração e independência, anunciados por José María em seu poema Las dos Américas, serão muito difíceis de realizar.

Notas:

(1) http://www.wilsoncenter.org/sites/default/fiis/ LAP_120810_Triangle_rpt.pdf
(2) Ver: “La minería canadiense en Latinoamérica. Um panorama contemporáneo”, de Arthur Phillips, Mary Roberts, Alix Stoicheff e Saviken Studnicki-Gizbert.
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(*) Coordenador de Opinião e articulista do La Jornada de México.
Fonte:  http://www.cartamaior.com.br/29/12/2013

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