Vitor Paolozzi*
Morreu ontem em Johannesburgo, aos 95 anos, Nelson Mandela, que
comandou, inclusive por meio da luta armada, a campanha pelo fim do
apartheid, o regime de segregação racial da África do Sul, e que foi o
primeiro presidente do país após a sua democratização.
Mandela ficou preso por 27 anos e meio e, ao sair, mostrou carisma e
liderança à altura da enorme expectativa depositada sobre ele, evitando a
ameaça de uma guerra civil e conduzindo um processo de reconciliação
entre negros e brancos que lhe valeu a admiração mundial, um prêmio
Nobel da Paz, o título de "herói dos heróis" da revista "The Economist",
e a classificação como "talvez o mais amado estadista do mundo" do
jornal "The New York Times".
Mandela morreu em sua casa. Com a saúde em gradual deterioração, ele
sofreu diversas internações ao longo do último ano. Na última delas, em
junho, ficou quatro meses hospitalizado. Ele não fazia aparições
públicas desde 2010. A morte foi anunciada pelo presidente sul-africano,
Jacob Zuma. "Ele agora está descansando. Ele agora está em paz", disse
Zuma. "Nossa nação perdeu seu maior filho. Nosso povo perdeu um pai."
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse que Mandela
"conquistou mais do que se pode esperar de qualquer homem". A presidente
Dilma Rousseff o apontou como "personalidade maior do século XX". O
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva rememorou um jantar com o líder
africano e Fidel Castro em Cuba, em 1994, e afirmou que "este homem,
mesmo encarcerado por 27 anos, não trazia uma gota de ódio".
Rolihlahla Mandela nasceu em 18 de julho de 1918, em Mvezo, um
vilarejo na região de Transkei, sudeste da África do Sul, numa época e
num país em que os negros não participavam de eleições, não podiam
frequentar restaurantes, praias, escolas, hospitais e outros locais de
uso exclusivo de brancos, eram obrigados a ficar dentro de áreas
delimitadas e precisavam portar passes ao sair delas, sob risco de serem
presos caso não os apresentassem quando exigido.
Seu pai era o chefe tribal dos mvezo, pertencentes à tribo thembu, da
etnia xhosa. Como parte da sua preparação para um dia ocupar uma função
de liderança na tribo, ele foi enviado para uma escola de missionários
ingleses e lá ganhou o nome Nelson no primeiro dia de aula. De acordo
com a tradição tribal, Mandela aos 16 anos ainda receberia outro nome,
Dalibhunga, após fazer circuncisão. Também era conhecido como Madiba,
nome do seu clã indígena.
Décadas mais tarde, escapou de ganhar mais um nome, quando se casou
pela terceira vez, com a ativista pró-direitos humanos Graça Machel,
viúva do presidente moçambicano Samora Machel. "Pelo menos ela permitiu
que eu mantivesse meu sobrenome", brincou, ao comentar o temperamento
forte da mulher. Suas duas primeiras esposas foram Evelyn Ntoko Mase,
com quem teve dois filhos e duas filhas, e Winnie Madikizela, que lhe
deu duas filhas.
Mandela ainda poderia ter tido um outro casamento, caso tivesse
aceito os planos traçados por um chefe tribal. Na juventude, para
escapar de uma união arranjada, fugiu para Johannesburgo. Lá, teve uma
série de empregos temporários e concluiu um curso de direito. Enquanto
estudava, começou a se interessar por política e, em 1943, filiou-se ao
Congresso Nacional Africano (CNA) - entidade criada em 1812 para
defender os direitos da população negra e que se tornou o principal
partido do país.
Na luta contra o regime racista, o prêmio Nobel da paz recorreu tanto à desobediência civil quanto à luta armada
Com o amigo Oliver Tambo, que também teria papel importante no CNA,
abriu, em 1952, o primeiro escritório de advocacia na região central de
Johannesburgo conduzido por negros. Por volta dessa época, começaram
seus problemas com o regime racista. Com base no Decreto de Supressão do
Comunismo, Mandela foi acusado e condenado à prisão, com direito a
sursis, por sua atuação na Campanha de Desafio às Leis Injustas.
Mandela foi um dos maiores defensores da aproximação do CNA com o
Partido Comunista da África do Sul. Em sua autobiografia, "Longa
Caminhada até a Liberdade" (ed. Nossa Cultura), conta que, após estudar
as obras de Marx, Engels, Lênin, Stálin e Mao Tsé-tung, viu-se
"fortemente atraído pela ideia de uma sociedade sem classes sociais".
Sem se converter ao comunismo, porém, concluiu que "os nacionalistas
africanos e os comunistas africanos em geral tinham muito mais coisas
unindo-os que os separando".
Em 1955, Mandela teve papel destacado na adoção da Carta da
Liberdade, manifesto de diversas organizações de defesa dos negros que
reivindicava reforma agrária e um Estado sem segregação. A reação do
governo foi processar por traição 156 ativistas, entre os quais Mandela.
Apesar da absolvição, a situação continuou a se agravar e, em 1960,
após o massacre de 69 manifestantes que exigiam a abolição do passe de
circulação, o governo proibiu os grupos políticos negros e fez centenas
de prisões.
Mandela decidiu então abandonar a não violência e aderir à luta
armada. Passou a ler todo o material que conseguiu encontrar sobre
guerra de guerrilha, incluindo textos de e sobre Mao Tsé-Tung, Che
Guevara, Fidel Castro e Menachem Begin (um dos líderes da oposição
armada ao governo do mandato britânico na Palestina e que se tornou
premiê de Israel). Entre as opções de guerrilha, terrorismo, revolução
declarada e sabotagem, Mandela optou pela última, mas sem descartar as
demais.
"Porque não envolve perdas de vida, a sabotagem oferecia a melhor
esperança de reconciliação entre as raças no futuro. Nós não queríamos
iniciar um conflito de sangue entre brancos e negros (...) Como ficariam
as relações entre brancos e negros se provocássemos uma guerra civil?
Sabotagem tinha a virtude adicional de exigir a menor quantidade de mão
de obra. Nossa estratégia era fazer incursões seletivas contra
instalações militares, usinas, linhas telefônicas e conexões de
transporte; alvos que não só dificultariam a eficiência militar do
Estado, mas que assustariam os apoiadores do Partido Nacional [dos
brancos], afugentariam o capital estrangeiro e enfraqueceriam a
economia", escreveu em sua autobiografia.
Mandela foi preso em 1962 e sentenciado a cinco anos de
encarceramento. Dois anos depois, recebeu nova condenação, desta vez à
prisão perpétua. Ele passaria recluso os próximos 27 anos e meio. De
início, foi submetido a trabalhos forçados, tendo que literalmente
quebrar pedras. Também teve de enfrentar o isolamento, tanto em cela
solitária como no contato com o mundo exterior, só podendo receber uma
visita por ano e uma carta a cada seis meses.
"A prisão e as autoridades conspiram para roubar a dignidade de cada
homem. Isso em si assegurou que eu iria sobreviver, pois qualquer homem
ou instituição que tente roubar de mim a minha dignidade vai perder
porque não vou me separar dela por preço algum ou sob qualquer pressão",
escreveu em sua autobiografia.
Nos últimos 14 meses de prisão, porém, a situação já era outra: ficou
em um chalé com piscina, dentro de uma penitenciária modelo. Anos
depois, ao projetar sua casa, reproduziu o desenho do chalé.
A mudança nas condições enfrentadas na prisão, acontecida ao mesmo
tempo em que se intensificavam os conflitos entre brancos e negros,
refletiu a decisão do CNA de personalizar em Mandela a luta pela
libertação dos presos políticos e também a necessidade do governo de
encontrar um interlocutor que tivesse suficiente autoridade moral para
negociar uma saída que evitasse uma guerra civil.
Três anos antes de ser libertado, Mandela já vinha mantendo conversas
com representantes do governo. Ele tomou solitariamente, sem consultar a
liderança do CNA, a decisão de abrir conversações. "Há vezes em que um
líder deve se movimentar à frente do rebanho, partir em uma direção
diferente, confiante que está liderando o seu povo no caminho certo",
escreveu.
Por diversas vezes, durante os anos de prisão, o governo ofereceu a
liberdade a Mandela em troca de concessões, como a renúncia à luta
armada. Ele sempre recusou. No início de 1985, o então presidente, P. W.
Botha, depois de mais uma negativa, disse no Parlamento: "Não é o
governo sul-africano que agora está no caminho da liberdade do sr.
Mandela. É ele próprio".
A resposta de Mandela foi uma carta, lida por sua filha Zindzi:
"Muitos já morreram desde a minha ida para a prisão (...). Tenho uma
dívida com as suas viúvas, com seus órfãos, com suas mães e com os seus
pais (...). Que liberdade me oferecem enquanto a organização do povo
permanece banida? Que liberdade me oferecem quando posso ser preso por
uma contravenção de passe? (...) Que liberdade me oferecem quando tenho
que pedir autorização para morar em uma área urbana? Que liberdade me
oferecem quando a minha própria cidadania sul-africana não é
respeitada?".
No começo de 1990, quando finalmente decidiu libertar Mandela sem
impor condições, o regime mais uma vez foi contrariado. No dia 9 de
fevereiro, o prisioneiro foi levado ao palácio do governo para um
encontro com o presidente Frederik de Klerk, que lhe comunicou que seria
solto no dia seguinte. Mandela então agradeceu, mas pediu para ficar
detido mais uma semana, pois julgava esse tempo necessário para que sua
família e o CNA fizessem preparativos. O presidente disse que o pedido
não poderia ser aceito porque a imprensa estrangeira já havia sido
avisada.
Fora da prisão, Mandela liderou com De Klerk as negociações que
resultaram em uma nova Constituição e na convocação de eleições
presidenciais para 1994. Foi um processo difícil, complicado pela
escalada da violência no país, instigada por grupos extremistas de
direita, e pelos muitos atritos entre Mandela e De Klerk.
Na abertura da Convenção para uma África do Sul Democrática (o fórum
de negociações entre o governo, CNA e outros grupos políticos), Mandela
reagiu à fala de De Klerk, com um forte ataque ao que considerou um
discurso desleal do presidente. "Mesmo o líder de um regime de minoria
desacreditado e ilegítimo, como é o dele, tem certos padrões morais a
manter (...). Se um homem pode vir para uma conferência dessa natureza e
fazer o tipo de política que ele fez, pouquíssimas pessoas gostariam de
negociar com tal homem".
Eleito presidente, convidou para a posse
três guardas brancos encarregados de vigiá-lo
durante os anos de prisão
Ainda assim, os dois negociaram e acabaram dividindo o Nobel da Paz
de 1993. Em março de 2012, De Klerk falaria sobre Mandela numa palestra:
"Não endosso a hagiografia geral em torno de Mandela. Ele de modo algum
era a figura afável e santificada tão divulgada hoje. Como adversário
político, podia ser brutal e bastante injusto (...) Contudo, sempre que a
situação exigiu, ele foi capaz de se elevar acima das paixões políticas
do momento e se unir a mim na definição de acomodações que permitiram o
prosseguimento do processo. Ele também teve a estatura e a força para
manter unida a sua incontrolável aliança, mesmo nos momentos mais
difíceis".
Eleito presidente, Mandela assumiu em maio de 1994. Para a cerimônia
de posse, convidou três guardas brancos encarregados de vigiá-lo durante
os anos de cárcere. "Mesmo nos momentos mais sombrios na prisão, quando
meus colegas e eu éramos empurrados ao nosso limite, eu via um
vislumbre de humanidade em um dos guardas, talvez apenas por um segundo,
mas era o bastante para me dar confiança e ir em frente", escreveu.
Uma das iniciativas mais importantes durante o governo de Mandela foi
a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Os trabalhos da
comissão centraram-se em três áreas: investigação de abusos de direitos
humanos cometidos entre 1960 e 1994; reparação e reabilitação das
vítimas; concessão de anistia aos perpetradores de crimes. O perdão não
foi concedido indiscriminadamente. Era necessário haver motivação
política para os crimes, e os perpetradores não podiam ocultar nenhuma
informação. Aqueles que não pedissem anistia, ficariam sujeitos a
processos e condenações.
Como chefe do Executivo, Mandela sofreu muitos ataques. "Privados de
tudo por tanto tempo, os negros queriam tudo, sem demora! Educação
melhor, moradia melhor, saúde melhor, salários melhores etc. Mas nem
Mandela podia atender a essas expectativas urgentes, e assim estava
destinado a ser uma decepção", afirma o jornalista David James Smith,
autor do livro "Young Mandela".
Mandela optou por se afastar do dia a dia do governo, delegando a
maior parte das tarefas a assessores e preferindo se dedicar às funções
cerimoniais e à política externa. Empenhou-se em patrocinar a resolução
de conflitos em países africanos e tentou intermediar uma saída para a
crise entre Líbia, Reino Unido e EUA por conta do atentado de Lockerbie.
E despertou a ira de detratores ao fazer declarações elogiosas a
ditadores como Fidel Castro, Saddam Hussein, Suharto (que governou a
Indonésia por 31 anos) e Muamar Gadafi.
Uma das áreas mais negligenciadas em seu governo foi o combate à aids
- algo particularmente grave, já que estima-se que a África do Sul seja
o país com o maior número de pessoas infectadas com o vírus HIV. Um dos
principais críticos nessa questão foi Edwin Cameron, juiz da Suprema
Corte sul-africana. Mas mesmo Cameron vê atenuantes: "Ele tinha outras
200 coisas urgentes para fazer, incluindo salvar nosso país da
destruição total num conflito racial. Isso ele conseguiu. O fato de não
ter tido um impacto na aids durante a sua Presidência deve ser relevado
por causa disso". Cameron destaca ainda que Mandela reconheceu o erro e,
após deixar o governo, teve papel crucial no aprimoramento das
políticas públicas contra a doença.
Prince Mashele, professor do departamento de Ciências Políticas da
Universidade de Pretória, também acha que Mandela salvou o país de uma
guerra civil. "Ele se tornou o queridinho dos brancos e, assim, inspirou
a confiança deles num governo negro. Ele também neutralizou a raiva
'negra' contra os brancos, algo que muito poucos líderes do CNA teriam
conseguido. Mas há vozes negras que pensam que Mandela mimou os brancos à
custa dos negros", diz Mashele.
Apesar de ter a possibilidade de reeleição, Mandela achou que
contribuiria mais para o fortalecimento da democracia no país se
deixasse a Presidência após apenas um mandato de cinco anos. "Ele merece
boa parte do crédito pela relativa civilidade da vida política
sul-africana. Como presidente, manteve um estilo político que estimulava
a participação política e a deliberação democrática", disse um de seus
biógrafos, Tom Lodge (autor de "Mandela: A Critical Life"), em artigo
para o site openDemocracy.
Após sair da Presidência, Mandela montou três fundações para atuar em
projetos humanitários. Em 2007, foi um dos criadores do The Elders (os
anciões), grupo que reúne ex-líderes, como Jimmy Carter, Desmond Tutu,
Kofi Annan e Gro Harlem Brundtland, para propor soluções para grandes
problemas globais. Um dos membros é Fernando Henrique Cardoso. "Sua
figura humana me marcou profundamente. Mandela é um desses homens
raríssimos que têm uma 'aura' própria, um magnetismo que não se sabe bem
de onde vem, mas que contagia a todos. Quando entrava numa sala, era
como se o ar se carregasse de eletricidade", escreveu o ex-presidente
brasileiro no prefácio à edição brasileira da autobiografia de Mandela.
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