O geógrafo britânico David Harvey lotou auditórios em três diferentes
cidades do país - Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro - em
novembro, quando veio para falar sobre o capitalismo e promover um de
seus livros mais antigos, "Os Limites do Capital", lançado em 1982 nos
Estados Unidos, mas somente agora traduzido para o português pela
Boitempo. A plateia, formada por pessoas especialmente na faixa dos 20
anos, mostra o interesse cada vez maior pelo autor, sobretudo, entre os
leitores mais jovens.
Segundo a editora, 4,2 mil pessoas participaram dos quatro eventos
realizados com o autor no país. Aos 78 anos, o próprio Harvey não sabe
explicar essa audiência tão grande. Uma possível resposta, diz, é que há
um aumento de interesse pelas ideias de Karl Marx (autor de referência
para Harvey) após 2007-2008, a maior crise do capitalismo desde 1930.
Mas, segundo o geógrafo, isso é só parte da verdade.
Harvey acha que se tornou uma pessoa mais conhecida ao fazer um site
na internet há cinco anos e por ter colocado um curso gratuito na rede
sobre "O Capital", obra de Marx. Ele conta que já são 2,5 milhões de
visitantes no seu site e o curso já está traduzido para 27 idiomas, com a
contribuição voluntária de pessoas que criaram legendas para as aulas.
O autor tem um olhar interessante e didático para a obra de Marx, na
qual encontrou explicações para os conflitos do espaço urbano, sobretudo
porque a mais recente crise relaciona mercado imobiliário e sistema
financeiro mundial. Alguns pesquisadores acham que as ideias de Harvey
ajudam a explicar os problemas vividos em grandes cidades como São
Paulo, e são eles que estariam por trás dos conflitos ocorridos nas
manifestações de junho.
A imersão em Marx começou a partir de um estudo nos anos 60, quando
Harvey analisava o sistema imobiliário de Baltimore, nos Estados Unidos.
Para ele, que atualmente é professor na pós-graduação da City
University of New York, a paisagem geográfica é palco de um conflito
social onde a luta de classes pode ser vista concretamente.
Acompanhando de longe as manifestações de rua no país e em outras
cidades do mundo, o geógrafo diz que essa é uma nova forma de fazer
política. Mas, ao mesmo tempo, para ele, é preciso relacionar esse tipo
de ativismo político com o que chamou de alienação universal.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O que torna as ideias de Karl Marx atuais?
David Harvey: Acho que as ideias de Marx sempre
foram importantes. A questão é: qual o contexto em que as ideias foram
usadas e como foram usadas. Foi mais difícil usar ideias de Marx em
relação ao capital diretamente entre os anos 60 e 70. Mas, como
consequência do neoliberalismo [corrente de pensamento que se evidenciou
no pós-1970], ficou mais direta a conexão entre o que Marx dizia e o
que está acontecendo ao nosso redor. A outra coisa é que, quando escrevi
o livro, eram recentes as questões sobre o capital financeiro, não
havia muitos escritos e questões sobre o papel da especulação, e, em
particular, sobre a especulação imobiliária no espaço urbano. Agora,
acho que é ainda mais importante esse olhar, porque a última crise, de
2007-2008, não se originou no mundo da produção, mas no da urbanização,
particularmente, no sistema de financiamento imobiliário. Se voltarmos
ao volume 3 de Marx, ele faz uma análise sobre a crise de 1847-48 e a de
1857. Nos dois casos, são crises financeiras e comerciais e não crises
na produção. Então, Marx tinha uma teoria sobre crises financeiras e
comerciais que ninguém tinha olhado.
"A coisa marcante é que nenhum dos eventos que estamos
vendo foram antecipados"
Valor: O que o sr. poderia citar como um paralelo das crises que Marx estudou com a crise de 2008?
Harvey: Marx faz um considerável exame do que ele
chama de papel incorreto do 'Bank Act', de 1844, quando o governo
britânico fez uma revisão do papel do banco central. Marx mostra como
aquela revisão exacerbou a crise posterior. Tornou-a mais profunda e
longa do que seria. Acho que essa é uma boa maneira de se pensar o papel
hoje do Banco Central Europeu (BCE). O BCE está tornando a crise mais
profunda e estendendo-a na Europa. Acho que Marx é ainda mais
interessante agora.
Valor: O sr. afirmou que a forma de trabalho
caracterizado pela mão de obra barata em vários países também pode ser
entendida usando a teoria de Marx.
Harvey: Marx fala de alienação no processo de
produção. Entre os marxistas, há muitas críticas contra o termo
alienação, porque ele não seria científico, seria mais emotivo e
instável. Acho que isso é um grande erro, porque vimos que muitos
protestos que aconteceram, e ainda acontecem, no mundo neste momento se
originaram em um tipo de reação emocional. E muitos deles são instáveis.
Então, esse é um ótimo momento para voltarmos a levantar questões sobre
a alienação e como ela se relaciona com o ativismo político. A
alienação produz diferentes tipos de respostas. As pessoas podem falar:
'Não posso fazer nada, não é da minha conta', e ficam sentadas
assistindo à TV. Ou as pessoas ficam tomadas pela raiva. Nós temos visto
muitos movimentos sociais nos anos recentes que são caracterizados por
essa raiva explosiva em uma população, que parecia estar indiferente.
Isso é um clássico modo de como a política da alienação ocorre no dia a
dia. Acho que estamos lidando com uma coisa que chamaria de alienação
universal nesse momento. Alienação sobre o trabalho, alienação sobre a
natureza da vida urbana, alienação nos protestos...
Valor: Esse momento político pode mudar algo, sendo um tipo de alienação, ou não pode mudar nada?
Harvey: Essa é a dificuldade da política da
alienação. Ela produz essa raiva e a questão é se essa raiva pode mudar,
ser organizada e se transformar em um projeto político, nos levando
para um mundo diferente. Isso me parece a grande questão no momento. O
que existe é que a efervescência segue e vemos emergir novas formas de
organização política. Pode ela de alguma forma superar suas diferenças e
capturar a raiva existente e torná-la uma força política? Não sei se
isso pode de fato acontecer.
Valor: Os protestos são fragmentados em todo o mundo. É necessário tornar esse movimento global para uma mudança significativa?
Harvey: Protestos globais possuem uma dinâmica
curiosa. Se você olhar para trás, historicamente, em 1848, havia uma
revolução em Paris, Londres, Frankfurt, Milão, mas a revolução acabou
tomando todo o continente. Ninguém organizou isso em todos os lugares.
Isso apenas aconteceu. Em alguns países recentemente houve esses
movimentos de "occupy". Lembro-me melhor do movimento de 15 de fevereiro
de 2003, quando havia perigo de guerra no Iraque e todo o mundo - 2
milhões de pessoas em Roma, 2 milhões de pessoas também em Madri, Nova
York e Londres - fizeram um protesto simultâneo, sem nenhum plano
organizado. A coisa marcante da situação atual é que nenhum desses
eventos que estamos vendo foram antecipados.
Valor: Algumas pessoas analisam o protesto no Brasil como de pessoas que buscavam ter direito à cidade, um termo que o sr. usa...
Harvey: Não sei quais os movimentos sociais
envolvidos, não estava aqui, então acho difícil fazer um julgamento. Eu
ouvi isso de fontes confiáveis. E aceito que esse era um elemento. Mas
não posso responder isso.
Valor: O sr. tem dito que há hoje um problema
comum em diversas grandes cidades do mundo, relacionado ao aumento do
capital especulativo imobiliário...
Harvey: O capitalismo está vivendo um duro momento.
Na verdade, nos últimos 20, 30 anos ele está tentando achar formas
alternativas e lucrativas para o investimento, porque a clássica forma
de investimento está reduzindo seus retornos. Foi assim com o 'boom' dos
eletrônicos da década de 90, que se tornou muito especulativo, e também
com a bolha da internet que resultou no 'crash' do mercado de ações em
2000. E depois o dinheiro começou a ir para o mercado imobiliário e
tivemos um 'crash' entre 2007 e 2008. Os sinais são de que o capitalismo
não sabe nesse momento o que fazer com o excedente.
Valor: Como assim?
Harvey: O Federal Reserve (Fed, banco central
americano) está colocando mais dinheiro na economia. A maior parte está
indo para o mercado de ações e outra parte está ficando dentro do
sistema bancário. Quase nada tem sido de fato investido na produção.
Esse capital está, portanto, apenas circulando no sistema financeiro e
as pessoas estão desesperadas para achar onde colocar o capital. A
reurbanização é um dos locais em que o excedente pode ser absorvido com
bons rendimentos [para o capital].
Valor: Quais lugares o sr. poderia citar como exemplo de onde isso ocorre atualmente?
Harvey: Na China, uma grande quantidade de
dinheiro tem ido para a urbanização. Não me surpreende que existam
megaprojetos no urbano. Esse tipo de investimento cria uma estrutura
Ponzi [especulativa]. Você põe dinheiro na cidade, a cidade começa a
explodir, e todo mundo coloca dinheiro nisso, e os preços das
propriedades em todo o lugar sobem expressivamente. Isso está
acontecendo em São Paulo, Londres, Xangai, Hong Kong e em Mumbai. Há
muitas vezes remoção de população e isso tem trazido algum tipo de
resistência. Por isso, não é acidentalmente que os maiores eventos
políticos dos últimos tempos sejam sobre as cidades, sobre a vida
urbana. Esse é um campo de uma vigorosa contestação política no momento.
E continuará a ser até o capital encontrar outra coisa para aplicar
seus recursos.
Valor: Estamos vivendo um momento em que há
ainda mais aprofundada a divisão entre a cidade do rico e a cidade do
pobre dentro de uma mesma cidade?
Harvey: As cidades sempre foram divididas em
classes. Sempre foram microestados. Mas provavelmente as desigualdades
aumentaram, porque a desigualdade de renda aumentou também. Por exemplo,
na cidade de Nova York, em 2012, 1% da população vivia com US$ 3,75
milhões por ano, enquanto 50% da população tentava viver com menos de
US$ 30 mil. Nunca vimos níveis de disparidades desse tamanho desde 1920.
Nova York se tornou uma cidade incrivelmente rica, a cidade está indo
muito bem, mas grande parte das pessoas está ficando muito pobre. Quando
isso acontece, você vê mais lutas emergindo, derivadas dessas
desigualdades.
"Na verdade, acredito que o custo do trabalho não faz
muito diferença para o capital hoje"
Valor: E como mudar isso?
Harvey: Nós temos um prefeito recém-eleito na
cidade de Nova York [o democrata Bill de Blasio]. E é possível que ele
mude algumas coisas, mas não acredito que ele terá poder suficiente para
fazer tudo que é preciso.
Valor: Quais poderes o prefeito tem, uma vez o
sr. o entende que há uma dinâmica global do capital que vai além da
jurisdição do prefeito?
Harvey: Ele tem alguns poderes de redistribuição.
Ele tem falado sobre colocar impostos especiais sobre os muito ricos
para que todas as crianças tenham acesso a creches públicas. Isso seria
um benefício fantástico, porque não há educação desse tipo gratuita. As
pessoas ricas de Manhattan pagam por essa educação. Se ele fizer isso,
será algo muito progressivo.
Valor: Na sua opinião, apesar dos movimentos globais, há espaço para políticas públicas locais para o desenvolvimento...
Harvey: Algumas cidades vão melhor do que outras
nesse sentido. Isso depende muito do tamanho do poder que um prefeito
tem. Em alguns lugares, ele tem mais poder. Nos Estados Unidos, isso é
muito significativo. Por exemplo, Baltimore gostaria de ter imigrantes
ilegais vindo para a cidade e prometeu que a força policial nunca
perguntaria a ninguém sobre seus documentos e não seriam levados para as
autoridades de imigração. Baltimore também iniciou o movimento chamado
de "living wage" (salário digno), que consistia de a cidade pagar esse
salário para todos os funcionários públicos e todos os subcontratados
relacionados com os serviços para a cidade. Então, por esses mecanismos,
a iniciativa local pode fazer algo, que talvez só fosse feito em nível
federal, ou que pode ir até mesmo contra o que seria uma lei federal.
Valor: A mudança depende do poder dos movimentos sociais?
Harvey: Baltimore se tornou uma cidade com 'living
wage' por causa dos movimentos sociais fortes. Quando chegou a eleição,
os candidatos tiveram que ter uma plataforma onde esses grupos foram
ouvidos. Quem se dizia contra, não recebeu os votos desse movimento.
Esse tipo de movimento político, por exemplo, ocorre muito nas igrejas e
nas escolas. É muito interessante olhar como os republicanos se
tornaram tão poderosos. Foi justamente por possuírem posições nos
quadros dos conselhos das escolas. E a esquerda está agora vendo como os
republicanos fizeram e entendendo que deveria fazer o mesmo.
Valor: O sr. acha que existe um caminho possível de transformação que se dá inevitavelmente por meio de partidos políticos?
Harvey: Tem uma vertente dentro da esquerda
americana que acredita que para fazer alguma mudança, precisa mudar isso
dentro do Partido Democrata. O partido agora está controlado por
pessoas de muita fama, próximas a Wall Street. Há limites sobre o que se
pode fazer com essas pessoas, pode-se tentar fazer uma agenda
reformista. Mas também se pode fazer reformas revolucionárias.
Valor: O que seriam essas reformas revolucionárias?
Harvey: Quando os trabalhadores se juntam e cortam a
jornada de trabalho, muitas vezes fazem um favor para o capital, porque
o capitalismo impõe uma superexploração aos trabalhadores até o ponto
em que não são eficazes no seu trabalho. Então, quando se corta a
jornada, há trabalhadores mais sadios e mais eficazes. As fases iniciais
da luta para cortar jornada de 14 horas para 10 horas, portanto, ajudam
o capital. Podemos imaginar que se cortarmos de 10 horas para 3 horas,
essa mudança não daria vantagem para o capital, mas aos trabalhadores. A
luta pela redução da jornada no começo tem características de
reformista, e em algum ponto ela se torna revolucionária.
Valor: A redução de jornada é uma conquista que
geralmente ocorre com ajuda sindical, mas algumas empresas tentam evitar
locais onde há sindicatos fortes para instalação de suas fábricas...
Harvey: Hoje, já não é tão importante fugir de
locais em que são fortes os movimentos sindicais, porque em muitas
produções a quantidade de mão de obra é muito reduzida. Comparado com o
resto, as variações no custo do trabalho já não fazem grande diferença.
Na verdade, acredito que o custo do trabalho não faz muito diferença
para o capital hoje.
Valor: O que faz diferença?
Harvey: Custo da terra, de matérias-primas,
isenções de impostos, eficiência na exportação... Acho que isso hoje é
relativamente mais importante. Hoje, a quantidade de homens necessários
para construir um carro é muito pequena.
Valor: Há alguns críticos que dizem que todas as ideias usadas pelo sr. estão em Marx, pouca coisa seria novidade...
Harvey: É verdade que estou sempre em constante
diálogo com Marx. Mas estar em diálogo com ele não significa que
necessariamente eu concordo com tudo que Marx diz. Tem vários aspectos
de Marx que não aceito. Eu não gosto da teoria da tendência da taxa de
lucro decrescente, não gosto da teoria da renda absoluta. Minha visão
sobre Marx é que posso usá-lo toda vez que faz sentido para mim em
termos do tipo de trabalho que estou fazendo sobre urbanização ou de
desenvolvimento geográfico desigual. Se não faz sentido naquele
contexto, tenho que transformar o que Marx está dizendo em outra coisa.
Ou tenho que abandoná-lo. Eu faço as duas coisas.
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Reportagem Por Vanessa Jurgenfeld | De São Paulo
FONTE: Valor Econômico online, 30/12/2013
FONTE: Valor Econômico online, 30/12/2013
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