Flávio Ricardo Vassoler*
Não seria mais interessante que não houvesse favelas ao invés de assistirmos à defesa da arte comunitária?
A literatura deve denunciar as
mazelas sociais? A literatura, por assim dizer, deve ser engajada? As
questões assim postas de pronto escamoteiam toda uma história de debates
encarniçados entre intelectuais de esquerda. Antonio Gramsci, Walter
Benjamin, György Lukács, Theodor Adorno, Bertolt Brecht, Jean-Paul
Sartre, Albert Camus. Dentro dos limites deste breve ensaio, este
escritor (esquerdista) gostaria de convocar o leitor e a leitora para
algumas reflexões a contrapelo de nosso ímpeto de transformação social.
Está em jogo, então, a questão de se a literatura, instrumentalizada a
priori, pode ter um efetivo papel revolucionário.
Pensemos sobre o caso paradigmático de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
O
escritor russo chegou a ser condenado à morte pelo tsar pelo fato de
ter participado do Círculo de Petrachévski, um grupo de intelectuais que
questionava frontalmente o regime e tinha como reivindicação
fundamental a abolição da servidão – em pleno século XIX, a Rússia ainda
mantinha sua divisão social do trabalho calcada sobre as estruturas
ossificadas do feudalismo.
Os
integrantes de Petrachévski passaram por todo o cerimonial da pena de
morte – Dostoiévski viria a explorar tal circunstância com muito ímpeto
em sua obra vindoura –, mas, no momento imediatamente anterior aos
disparos do pelotão de fuzilamento, o tsar comuta a pena e os condena a
longos anos de trabalho forçado na longínqua Sibéria. Na prisão que
posteriormente seria imortalizada pelo escritor como a Casa dos Mortos,
Dostoiévski entrou em contato com o lumpesinato russo que deveria ser
emancipado da noite para as Luzes; pôde perceber como as noções de
progresso e revolução social tendem a fazer tábula rasa das contradições
históricas que se cristalizam nas relações recíprocas entre os homens
como se fossem uma segunda natureza. A metáfora maior que desponta da
Casa dos Mortos é o socialismo de caserna – ou pior, de presídio –, uma
sociedade que, para se estruturar em função da solidariedade, precisa
coagir a todos e a cada um de seus membros a não mais competir – ou,
então, a fazê-lo apenas no inflado mercado negro. Dostoiévski se deu
conta de que um componente fundamental da personalidade, a expressão
autóctone e livremente orientada, acabaria colidindo com os planos
matemáticos de transformação social. Muitas vezes, os reclusos – seja na
Sibéria, seja na vindoura URSS que o escritor bem pôde prenunciar –
preferiam lançar tudo às favas, torrar o dinheiro (na prisão, os
cigarros) economizado durante anos, quebrar todo o regulamento, acabar
com os abonos por bom comportamento, se entregar a orgias e a bebedeiras
que duravam apenas algumas horas, mas se expressar, fazer o que bem
lhes aprouvesse, ainda que tudo isso colidisse contra os ditames do
cálculo utilitário e racional. Os ditames da emancipação.
As
posições políticas de Dostoiévski se tornaram profundamente ambíguas
após a experiência siberiana. O escritor chegou a publicar em veículos
tsaristas e, recorrentemente, se via em escaramuças contra a intelligentsia
revolucionária, os pais da geração de Vladimir Ilitch Ulianov, também
conhecido como Lênin. Mas, neste momento, as questões que abriram este
ensaio voltam à tona com novos matizes: ao refletir, de modo narrativo,
sobre as contradições historicamente (re)produzidas que a intelligentsia
queria suprimir, Dostoiévski pôde intuir que a revolução se voltaria
contra si mesma, que a emancipação seria subsumida pelo autoritarismo e
pela arbitrariedade, que uma sociedade de espiões recíprocos se
instalaria para conter os ímpetos mais propriamente “irracionais” de
seus homens e mulheres. (Só não consta da propaganda revolucionária que
os estatutos do NKVD e da KGB transformariam a razão emancipatória em
razão de Estado, a revolução em Realpolitik.) Sendo assim, a dialética
de Dostoiévski que não quis instrumentalizar a literatura para que ela
pudesse acompanhar o movimento da contradição histórica não prestou um
serviço mais engajado para as causas de transformação social do que a
arte panfletária e engajada a priori?
Não
quero dizer com isso que não possa haver denúncias, que não possa haver
narrativas inflamadas e veementes em contraposição à brutalidade do apartheid
sul-africano e ao Gulag brasileiro, o horror de nossa periferia
rediviva. Mas e se, ao lado de Paulo Freire, o escritor entrevir que o
oprimido só faz aguardar o momento em que a revolução se confundirá com o
ressentimento para dar vazão ao novo opressor? A arte, então, deverá
ficar em silêncio? A negação da negação deve ser amordaçada quando o
poder troca de mãos? (Quando o poder permanece poderoso.) O florentino
Nicolau Maquiavel bem poderia sentenciar, então, que a direita e a
esquerda são mãos que fazem parte de um mesmo corpo.
A
forma que constitui a obra de arte, o movimento de sua arquitetura,
talvez possa acompanhar e derivar os sentidos e os ressentimentos
históricos com mais profundidade se, justamente, não tiver que se filiar
a uma posição unívoca. E isso, caro leitor, cara leitora, não
significa, de modo algum, a defesa a meu ver estéril da arte pela arte.
Minha (contra)posição, no caso, caminha tanto ao lado de Dostoiévski
quanto a reboque de um ateniense que jamais deixou de refletir à revelia
das questões de seu tempo. Consta que Sócrates filosofava na Ágora, a
praça principal de Atenas, diante dos mais inusitados interlocutores, e
sua maiêutica – os primórdios da dialética – não deixava de apontar a
dúvida contra a própria têmpora. O “sei que nada sei” socrático, que
tanto enraivecia seus adversários pragmáticos, poderia ser lido, então,
não como o pensamento-para-uma-inequívoca-finalidade, mas como os moldes
do que seria a utopia em uma sociedade reconciliada consigo mesma,
sociedade que não nos coagiria ao trabalho, pois saberia lançar mão dos
únicos escravos que a humanidade teria condição de aceitar – as máquinas
– para produzir a riqueza que saberíamos repartir de modo a que vida
fosse liberada para o livre contraditório, para a arte, para o belo. Não
teria sido isso que Marx, n’A Idelogia Alemã, e Oscar Wilde, n’A alma do homem sob o socialismo, quiseram dizer com a utopia que nos permitiria pescar durante a tarde e fazer crítica literária à noite?
Quando
sabemos que nossos tempos vivem o crepúsculo da utopia – quando não o
seu réquiem –, pensar a contrapelo de si mesmo tem o gosto tão amargo
quanto a cicuta que vitimou Sócrates. Mas já que a maiêutica, no limite,
não prescinde do extremismo de Édipo a rasgar os próprios olhos,
gostaria de convidar o leitor e a leitora para uma última sessão de
autoflagelação. Eis um fragmento de um aríete dialético – Kafka: pró e contra
(São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 88-89), do filósofo Günther Anders
(1902-1992): “Mas aquilo a que damos o nome de arte provém sem dúvida de
épocas em que existiam relações de domínio, ou seja, diferenças de
posição social, portanto, também diferenças sociais de linguagem. De
fato, a distância da beleza ou da obra de arte é a tal ponto reflexo da
distância e do desnível sociais (...) que, por mais desagradável que a tese possa soar [grifo
de Sócrates e Dostoiévski], a neutralização de classes paralisaria a
arte (...); se não expressamente em relação à arte, pelo menos em
relação ao ‘espírito’ em geral”.
Antes
que o leitor e a leitora mais exasperados e engajados considerem Anders
um rematado reacionário, consideremos, por exemplo, se o miserabilismo
cultural daqueles que querem enaltecer as produções periféricas como
autóctones, legítimas e altamente estéticas não tenta suprimir o abismo
de classe apenas com o nominalismo que afirma a alteridade sem que a
desigualdade seja suprimida. A dialética se insinua: não seria mais
interessante que não houvesse favelas ao invés de assistirmos à defesa
da arte comunitária? Sócrates e Dostoiévski complementariam: e se a
indústria cultural, que procura padronizar o nível das mercadorias para
que não haja arestas entre os consumidores, já tiver mapeado as áreas
periféricas como excelentes nichos de mercado? (Afinal, os últimos dez
anos não impulsionaram a nova classe média? Resta saber se a ascensão
social faz algo mais do que nos emancipar-para-mais-consumo.)
Mas
o fragmento de Günther Anders não termina no ponto em que eu o
guilhotinei. Após o libelo (auto)crítico, Anders tenta exumar a utopia:
“Com a ideia de ‘superação’ (Aufhebung) da filosofia, Hegel [e Marx –
complemento de Dostoiévski e Sócrates] não pretendera indicar outra
coisa senão a suspensão daquela situação social de tensão na qual a
filosofia [e a arte] é possível e necessária”. A superação dialética,
que implica a concomitância dos movimentos de negação e conservação para
que, assim esperamos, haja a negação da negação, já vislumbrou, ainda
que por frestas exíguas, uma sociedade que trouxesse pujança ao espírito
sem que as classes e as pessoas fossem arremessadas umas contra as
outras, sem que a competição voraz fosse o substrato do intelecto e da
criação. Mas, hoje, a arte não engajada – a dialética insinua que esta
seria a mais engajada das artes – entrevê que o ressentimento coopta
justamente aqueles e aquelas que teriam interesse, segundo uma
racionalidade emancipatória, em algo melhor do que o atual estado de
coisas. Ora, “melhor” é tido como “elitista” – ao invés de pensarmos
sobre as condições de (re)produção do elitismo, proscrevamos sem mais a
hierarquia do espírito e aceitemos, irrefletidamente, a mediocrização da
arte que nos apresenta as afinidade eletivas entre o culturalismo
(miserabilismo) da diferença e a indústria cultural.
Marx
certa vez sentenciou: “A história se repete, a primeira vez como
tragédia” (tese), “a segunda como farsa” (antítese). Quando o
esquerdismo cultural se endireita a ponto de antecipar as premissas
mercadológicas das agências publicitárias, o não-engajamento engajado de
Sócrates e Dostoiévski faria muito bem em perguntar:
−
Que diria Marx em face da suposta síntese de nossos tempos? Será que o
alemão colocaria as barbas de molho e diria que, pela terceira vez,
farsa e tragédia se confundem?
Talvez Marx buscasse arrimo em outro florentino citado n’O Capital.
[Ao que o esquerdismo cultural só faria bradar: citações são elitistas!
(Sócrates e Dostoiévski, novamente, fariam muito bem em perguntar: será
que eles consideram que o estudo é elitista?)] Marx, cujo otimismo
histórico buscava traduzir O Capital para os trabalhadores –
quanta diferença para o miserabilismo cultural da atualidade! –, dialoga
com ninguém menos que Dante Alighieri, para quem a proscrição de
Pandora, a reclusa da esperança, era a premissa inscrita às portas do
inferno
− Lasciate ogni speranza, voi ch’intrate, abandonai toda esperança, vós que entrais. (La Divina Commedia – Inferno. Milano: Mondadori, 2004, p. 20.)
O
portal do inferno é mais dialético do que a resignação primeira parece
sugerir. Abandonar a esperança antes de sermos arregimentados pelas
caldeiras diabólicas significa, também, conservá-la, mantê-la frágil e
algo distante, para que a lucidez da crítica não seja cooptada pelo
corredor polonês. Pandora permanece em sua caixa – em seu cárcere –, mas
a esperança não se vê rebaixada ao mal menor para (re)produzir o
existente. Só assim me parece possível ler a ironia do demônio de Dante
em diálogo com a diatribe do vienense Karl Kraus (1874-1936) como uma
exortação dialética a que continuemos a escavar a utopia entre os
escombros. “O diabo é um otimista se acredita que pode tornar os seres
humanos piores”.
Para Caio Sarack
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*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito,
um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com
o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses –
para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/11/12/13
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