Hollywood é um luminoso cemitério de estrelas.
É um cemitério de beijos e olhos e corpos
embalsamados no tempo da película
Meu Deus, que saudade do cinema! Que saudade do
sonho, da utopia fílmica dos anos 1950 e 60, sacralizada pela “Cahiers
du Cinéma” e pelos círculos de fumaça dos Gitanes sem filtro.
Atualmente, a cinefilia soa como um vício sexual. Hoje o cinema é nu.
Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, na ponta dos dedos
dos insones, está rodando bolsinha nas ruas. Tenho saudades da sala
escura, do cinema segredo, o cinema dos pobres tímidos, punheta dos
rapazes feios, o cinema como realidade alternativa. Como era bom esperar
um filme do Fellini, a cada ano, e o novo Antonioni, e o novo Godard...
Não chego a ser um cinéfilo puro. Faltam-me o gosto arquivista, o amor
às fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood.
Cinéfilo
era o Manuel Puig. Li, outro dia, que Puig estava morrendo em
Cuernavaca. Uma de suas “filhas”, Yasmin (uma bicha “filha” dele com o
Ali Khan, pois Puig se imaginava a Rita Hayworth), chorava à beira do
leito achando que Puig já entrara em coma. Mas, na esperança, testou os
sinais vitais de sua “mãe”. Falou-lhe: “Mãe..., ontem eu vi ‘Stella
Dallas’, do King Vidor. Chorei tanto...”. A “mãe” Puig balbuciou do
leito: “É... a Barbara Stanwick está bem, mas o John Boles nunca me
emocionou...”. Yasmim, a bicha cinéfila, caiu em prantos de felicidade:
“Mamãe está viva!”.
O cinema era a “síntese das artes”. E todo mundo pensava: “Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?”.
Sempre que me perguntam isso, eu me lembro de Humberto Mauro, que conheci já velhinho.
Para
Humberto Mauro, o célebre cineasta-fundador dos anos 1920/30, “cinema é
cachoeira”. Por quê? Vou contar aqui de novo. Quando ele fazia seus
filmes na Cinédia do Rio, todo amigo que ele encontrava na rua dizia:
“Humberto, você precisa é ir no meu sítio lá em Correias filmar a
cachoeira que tem lá! Você precisa ver que cachoeira!”. E o Humberto
Mauro ficava com aquilo na cabeça: “Por que querem que eu filme
cachoeiras?”.
Um dia, ele estava dando uma
palestra para uns cinéfilos de um cineclube do interior quando, já na
estação, atrasado para pegar o trem, um garoto agarrou-o pelo paletó e
perguntou-lhe sobre o grande enigma: “Seu Mauro, afinal de contas, o que
é a ‘alma’ do cinema?”. E o velho Mauro, correndo atrás do vagão que
partia, deu a grande definição: “Cinema, meu filho, é cachoeira!”.
Hoje,
ninguém pergunta mais isso. Tantas são as formas de reprodução da
imagem, tanta é a virtualização da realidade, que talvez a pergunta
devesse ser feita por alguém na tela, algum fantasma projetado na tela
nos perguntando, invertidamente:
“Ei, você aí!... O que é a realidade?”.
Hoje,
vemos que a “máquina do mundo”, quanto mais aberta é, mais vazia e
misteriosa. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, matematizá-la,
descreve-a, mas não a condensa. Por isso, a ideia de cachoeira é a
metáfora melhor de cinema. Esta imagem “heraclitiana” de uma água que
não para de fluir é ótima para definir nossa ex-sétima arte. Por isso,
os amigos de H. Mauro, na sua sabedoria para o óbvio, diziam no
botequim: “Vai filmar minha cachoeira!”. Só o movimento tem de ser
filmado. Só as cachoeiras da vida têm de ser retratadas na busca de
alguma verdade. Não há uma realidade que finalmente pare e se configure.
Buscá-la, tanto na arte quanto na política, é fracasso certo.
Esse
foi o aprendizado do século XX. Tentou capturar o vasto e incessante
universo em fórmulas que o esgotassem e nada ficou preso. Por mais que
queiramos que o cinema seja a arte de captar a vida, o cinema é a arte
da morte.
Henri Bergson, ao ver o “cinematógrafo”
pela primeira vez em Paris, deu a grande definição: “O cinema é
importante, para que se veja e se saiba no futuro a maneira como os
antigos se moviam”. É isso aí. Cinema é o que se passa dentro do plano, a
ação entre as pessoas e as coisas, para além do que contam os roteiros.
Há uma “fisicalidade” no cinema em que as coisas brilham antes do
enredo. Há uma superficialidade “profunda” no cinema básico que os
grandes mestres sacaram.
Sem bodes, irmãos, mas
vejam como Hollywood é um luminoso cemitério de estrelas. É um cemitério
de beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Vejam
como Fred Astaire dança no ar do nada, vejam como James Dean já
prefigurava a morte na própria interpretação de sua melancolia. Como dói
se apaixonar por uma morta, como eu, que me apaixonei por Brigitte Helm
em “Metropolis” e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks, numa
necrofilia de sala escura. Mesmo num musical, o cinema filma a morte;
mesmo no filme de ação, quando todos tentamos burlá-la numa ginga, num
drible, ela não deixa. Como é estranho que Gene Kelly tenha morrido,
aquele anjo de juventude, como pôde Kirk Douglas ter um derrame e
gaguejar na festa do Oscar, como pôde o nosso Super-Homem morrer na
cadeira de rodas?
O trágico do cinema é sua maior
verdade. A pintura e outras artes tentam exorcizar a morte, todas as
artes fazem isso. Mas, nelas, ninguém se mexe. A barra é mais leve. No
cinema não tem perdão. Ligou a câmera, lá está a velha morte nos
olhando. Assim, não há ideologia ou política ou arte ou filme ou
literatura que dê conta do implacável fluir desta cachoeira. Toda a
tragédia dos séculos tem sido a tentativa de se trancar o movente em
fórmula fechada, em alcançar um céu estático, definitivo, um dia em que
tudo se resolva. O paraíso seria um lugar imóvel, onde não houvesse a
morte e, portanto, nem cinema. Não há “cinema paradiso” (talvez por isso
o filme seja tão ruim).
Hoje estamos todos na
saudade deste passado. Queremos voltar, principalmente intelectuais e
outros religiosos, a esse tempo em que a morte seria dominada pela
técnica, em que o paraíso fosse planejável. Não há isto. Somos uma
cachoeira olhando a outra e todas nossas ações no mundo têm este
fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, jamais
veremos um fim ou um início. A galáxia e o ovo, todos estamos num fluir
sem rumo. Por isso, a cachoeira é a melhor definição de cinema, ou da
vida.
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