Contardo Calligaris*
Quando eu era criança, os adultos ao meu redor
se esforçavam para que acreditasse no Papai Noel,
no Natal e no bebê Jesus.
Um dia, os mesmos adultos começaram a me explicar que, para eu crescer,
era melhor que eu não acreditasse mais no Papai Noel, no Natal e no bebê
Jesus.
Mesmo assim, às vezes, embora duvidando que ele entregue meus presentes
no dia 25, fico a fim de fazer meus pedidos ao Papai Noel.
Um amigo leitor, Sergio Beni Luftglas, em dezembro, faz parte das "duas
dúzias de papais noéis judeus na praça". Ele me contou que o entusiasmo
produzido por sua chegada é cada vez mais breve: "Acho estranho uma
pessoa ser tão esperada e depois de pouco tempo já não ser tão
especial". Explicação: "É que tem muito Papai Noel na praça... Um em
cada esquina... Acho que deviam falar para as crianças: o Papai Noel só
tem um... estes que vocês estão vendo são os irmãos dele".
Seguindo a recomendação de Sergio, não entregarei minha carta para o Papai Noel do shopping. Vou publicá-la aqui mesmo.
Caro Papai Noel, não quero brinquedos, nem roupa, nem eletrônicos, nem
livros --essas coisas, prefiro comprar eu mesmo. Como presente, queria
que você interferisse (de leve, claro) na realidade do meu dia a dia.
1) Gostaria que, ao menos por um tempo (que você escolhe --entre uma
semana e um ano, ok?), ninguém possa mais lamentar o fato de que
estaríamos todos apaixonados por nós mesmos.
Desculpe, Papai Noel, mas não aguento mais ler e ouvir críticos
culturais improvisados (ou não) castigando nosso "narcisismo". Você
dirá: mas não é verdade que somos narcisistas? Claro que é verdade, mas
acontece que você é um homem culto, até porque faz séculos que passa o
ano lendo ao lado da lareira, lá no polo Norte, enquanto seus gnomos
fabricam os brinquedos.
Você, desde os anos 60, estudou Kernberg, Kohut e Christopher Lasch, e
sabe que "narcisista" pouco tem a ver com a história de Narciso
apaixonado por sua imagem: somos narcisistas no sentido clínico, ou
seja, somos tragicamente inseguros e carentes, eternamente dependentes
da apreciação dos outros.
Vivemos contando os "curtiu" nos nossos posts no Instagram. Longe de
pensar só em nós, agimos em função das reações que gostaríamos de
provocar nos outros; seduzimos, provocamos, mas raramente seguimos uma
necessidade que seja realmente nossa.
Não adianta: aqui o pessoal fala que somos narcisistas porque morremos de amor por nós mesmos.
2) Gostaria que, por alguma mágica, todos tivéssemos sempre que fazer a
diferença entre o que achamos e o que realmente sabemos. Você já
constatou que, sobretudo em psicologia, a gente pode se expressar em
linguagem natural --consequência: o pessoal fala qualquer opinião ou
preconceito como se fosse ciência, na cara dura.
Exemplo. Há os que afirmam "a mulher não tem fantasias de prostituição, e
os que pensam que ela tem são os últimos (dos) machistas". Você, que se
mantém informado e assina as melhores revistas há tempos, sabe (desde
os anos 30) que a fantasia de prostituição é mais que trivial --aliás,
não só nas jovens mulheres, mas também nos homens. Papai Noel, acredite,
discutir com conversa-fiada dá um cansaço tremendo.
3) Gostaria que, a partir deste Natal, os jovens de 13 anos soubessem
quem é Thomas Mann, mesmo se, para isso, eles tivessem que ignorar quem é
Lady Gaga.
4) Gostaria que nenhum professor, de primário, secundário ou terciário,
ganhasse presente de Natal, se ele ou ela disser mais uma vez para seus
alunos que dar um Google num tema significa "fazer pesquisa".
5) Gostaria que as pessoas pensassem mais em promover sua liberdade e
menos em limitar a liberdade dos outros. Tipo: "Eu sou contra o
casamento gay", tudo bem, não seja gay e, se for, não case. Qual é o
problema?
6) Gostaria que os adultos parassem de tentar ser (ou parecer)
adolescentes e, com isso, deixassem aos adolescentes a chance de se
tornarem adultos. Por que os adolescentes cresceriam, se eles são
objetos de inveja dos adultos?
A carta continua; tem 78 itens (a generosidade do Papai Noel é
conhecida), alguns dos quais retomarei em outras colunas. Mas eis como
termina:
76) Gostaria que existisse um serviço da Tim para cancelar linhas de dados (e, existindo, que respondesse).
77) Gostaria que o Brasil parasse de ser o país mais caro dos que eu conheço.
78) Enfim, gostaria que todos, neste Natal, recebessem de você ao menos um presente que não sabiam que eles desejavam.
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*Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de
antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete
sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo
(patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de
"Ilustrada".
Fonte: Folha online, 19/12/2013
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