O anjo cor de fogo abraça-o. A sua grande mão direita
acaricia a barba do profeta, e as suas grandes asas estão estendidas
pelo vento. A sua veste é ampla e feminina, com abundantes pregas
desenroladas. Parece dominar a composição, sem dúvida porque o artista
nunca figurou diretamente Deus, em respeito à tradição judaica. É
precisamente sob esta forma de anjo que ele representa indiretamente a
presença divina.
Isaías, respeitoso, inclina-se e flete o joelho. O seu
rosto meditativo, luminoso, dominado pelo verde - cor da esperança? -
parece mergulhado numa profunda meditação. Entre as convenções da
linguagem corporal, a barba longa significa a velhice e a sabedoria.
Ela é frequentemente usada pelos ilustradores medievais. Chagall
utiliza-a aqui como o sinal essencial que distingue o profeta-sábio.
Outra convenção, a do pergaminho desenrolado, está
igualmente presente. As palavras divinas que lhe são inspiradas pelo
anjo estão já escritas, cobertas pela sua grande mão aberta.
Através desta composição, Chagall relata-nos os
acontecimentos da História da Salvação. A Bíblia, para ele, era poesia
pura que «canta a tragédia humana»: «Para mim, pintar a Bíblia é como
um ramo de flores. A Bíblia para mim é poesia totalmente pura, uma
tragédia humana. Os profetas inspiram-me, Jeremias, Isaías... é a
poesia comprometida. (...) Eu não proclamo o drama da vida. Não
dramatizo, mesmo quando a morte está presente num quadro. É trágico por
natureza, é assim, simplesmente» (Chagall em entrevista a Ambroise
Vollard).
A crucificação é aqui evocada atrás da cena principal, à
esquerda. De facto, é pela sua morte e ressurreição que Cristo, em
Jerusalém, realiza a profecia de Isaías, diante de uma «multidão de
povos», reunidos mais abaixo: «Todas as nações irão ao seu encontro,
muitos povos se colocarão a caminho, e dirão: "Vinde, subamos à
montanha do Senhor, ao templo do Deus de Jacob"».
Este templo passa a ser o seu corpo. E ele está em
relação com outra profecia, diretamente ligada ao anúncio do nascimento
do Salvador: a mãe, no esplêndido halo azulado do seu manto, trazendo o
seu filho, em baixo, à direita, no enfiamento da diagonal que parte da
crucificação, serve de elemento que liga estas duas partes.
É verdade que a doçura da maternidade anuncia a
violência da cruz, mas sobretudo o amor infinito que nos é dado: «Por
isso o Senhor, por sua conta e risco,vos dará um sinal. Olhai: a jovem
está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de
Emanuel» (Is 7,14). Esta doçura participa, aliás, no ambiente tranquilo
da parte direita do quadro.
Em Chagall, os animais ocupam sempre um lugar
importante, comparável ao dos homens. Nas suas ilustrações da Bíblia,
os animais são muitas vezes representados com tanta importância como os
humanos. Segundo Mircea Eliade, em Chagall «a amizade entre o homem e o
mundo animal é um sintoma paradisíaco».
Para ele, o mundo ideal é pintado como um lugar onde o
homem, o animal e o anjo vivem juntos em paz, sob o olhar de Deus.
Chagall exprimiu esta procura da harmonia entre o homem e a natureza,
este desejo de paz sobre a Terra. Aqui, ele ilustra perfeitamente a
palavra do livro de Isaías: «A justiça será o cinto dos seus rins,e a
lealdade circundará os seus flancos. Então o lobo habitará com o
cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o
leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. (...) Não haverá dano
nem destruição em todo o meu santo monte» (Isaías 11, 5-9).
Fiel ao texto que fala da reconciliação das criaturas
sob o reino da justiça divina, o artista representa sobre a parte
direita da tela as bestas ferozes, os animais domésticos e o ser
humano, felizes por estarem juntos, sob a vigilância de um anjo vestido
de branco.
A paisagem, ainda que seja representada no contexto do
Antigo Testamento, não procura evocar apenas o passado, a época
bíblica. Para Chagall, trata-se da paisagem do presente e também do
futuro, isto é, a paisagem que ele vê diante dos seus olhos e que quer
mostrar ao mundo.
É alguma coisa de imutável que ele se esforçou por
conceber neste quadro, de tal maneira que ele continua tocante e
acessível em todos os tempos. O facto de o artista não precisar
claramente nem de espaço nem de tempo, permite à mensagem das suas
ilustrações ser universal e intemporal, como a mensagem de Isaías
convida cada um de nós, no seu dia a dia, a acolher a vinda do Deus
salvador e o advento da paz total, «quando as espadas se converterem em
relhas de arado e as lanças em foices».
O próprio Chagall exprimiu o seu distanciamento da
procura pela verdade do mundo bíblico: «Através da sabedoria da Bíblia,
vejo os acontecimentos da vida e as obras de arte. Uma verdadeira
grande obra é atravessada pelo seu espírito e harmonia. (...) Como na
minha vida interior o espírito e o mundo da Bíblia ocupam um lugar
importante, tentei exprimi-lo. É essencial representar os elementos do
mundo que não são visíveis, e não reproduzir a natureza em todos os
seus aspetos».
Como acontece muitas vezes na última parte da obra de
Chagall, esta tela, entre o calor e do turbilhão da paleta avermelhada,
respira a paz, com duas personagens principais que estendem as suas
formas generosas, no meio da doçura de outros motivos.
É também um estado de espírito particular que somos
chamados a partilhar. A figura do crucificado está presente, mas num
plano secundário. O artista olha agora do outro lado, do lado da vida. A
sua pintura testemunha a luz da mensagem da Bíblia, que é a herança
comum entre judaísmo e cristianismo.
Deixemos Chagall concluir a nossa primeira etapa deste tempo do Advento:
«A arte, sem o amor, (...) abriria a porta errada.
(...) Não pode haver nenhuma mensagem plástica, ou qualquer outra
mensagem, seja qual for, sem valores humanitários, ou sem o que nós
muitas vezes chamamos o "Amor-Cor". Fora disso não há qualquer valor.
(...) Esta bondade e este Amor de que falo são, segundo o meu próprio
vocabulário, a cor, a luz. (...) Mas o que é mais importante é o
sangue, e o sangue é, para o artista, a cor. (...) Perguntam-me com
frequência o que é que entendo pela cor e a sua química. A mesma coisa
pode ser dita para a música: «A profundidade da cor atravessa os olhos e
fica na alma, da mesma maneira que a música entra nos ouvidos e fica na
alma." (...) Agora sinto a presença de uma cor, que é a cor do amor.
(...) Mas se ler a Bíblia e os Salmos, encontrará tudo, mesmo a melhor
tese sobre a arte e sobre a vida.» (Conferência na Universidade de
Chicago, fevereiro 1958).
P. Curnier-Laroche
In Narthex
© SITE de Portugal: SNPC (trad.) | 06.12.13
In Narthex
© SITE de Portugal: SNPC (trad.) | 06.12.13
Nenhum comentário:
Postar um comentário