quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Hitler se revela: fi-lo porque qui-lo


Paulo Ghiraldelli*
 
Sejamos ingênuos: ‘o que se passava na mente de Hitler enquanto agia de maneira tão cruel com os judeus’?
O filósofo esloveno Zizek diz que Hitler pode ser visto como um ironista, “quase” no sentido que esse termo é usado pelo filósofo americano Richard Rorty para caracterizar a si mesmo.[1]

Ironia é a figura de linguagem que nomeia o ato em que se afirma algo enquanto o que se quer dizer é justamente o contrário. O termo ironista, de Rorty, pega uma parte do significado de ironia. Quem diz uma ironia apenas lança uma afirmação, e espera que a expressão por si só faça seu serviço. Caso tenha que explicar algo mais, a ironia já terá se perdido. Então, quando Rorty se qualifica como um ironista, diz que, como Sócrates, ele faz afirmações que devem contar ou não com o assentimento dos que conversam com ele, sem que se tenha de expor uma teoria profunda ou uma metafísica para fundamentar o que disse.
Na tradição filosófica é exatamente assim que Sócrates se fez irônico: ele levava a conversa até topar com uma contradição fatal (aporia). Trata-se do “método da refutação” (elenhós). Não requisitava nenhuma grande teoria ou qualquer metafísica para fundamentar seu método. Platão, este sim, buscou fundamentos e, por isso mesmo, criou a filosofia de um modo peculiar.
Zizek usa a noção de ironista para responder, ainda que em parte, o que fez Hitler agir como agiu, transformando-se no autor do Holocausto.
Hitler teria agido sob o impulso de um ódio puro e primitivo, o ‘irracional’? Hitler foi um ‘charlatão’, alguém que fingia ódio aos judeus apenas para chegar ao poder? Hitler foi alguém sinceramente convencido de que os judeus eram maus e que só a imposição da raça ariana salvaria o mundo?  Ou ele foi um ‘artista do mal’?
Zizek expõe as várias opções de caracterização de Hitler e, enfim, diz aquilo que no nosso jargão é o “fi-lo porque qui-lo”, do Jânio Quadros. Isto é, Hitler afirmou que tinha de matar os judeus – e ponto final. Nada há além. Não teríamos um objetivo de Hitler a ser desvendado. Não há o que explicar.
Bem, então, o Holocausto seria o “Mal Absoluto”, do qual nada se pode dizer. Dizer algo já seria afrontoso e desrespeitoso. Zizek acha que essa opção tem lá o seus inconvenientes: se não podemos falar do Holocausto então estamos calados perigosamente ao querer entender o antissemitismo e, dessa forma, ficamos impotentes diante de conflitos políticos do Oriente Médio – que mexem com o mundo.
Mas ele confessa que há algo de verdadeiro na ideia de “Mal Absoluto”, uma vez que o que fizemos com o Holocausto foi coloca-lo em comédia, como em filmes do tipo A vida é bela. Para o que não se pode explicar, usamos o riso. Mas essa solução acaba sendo, de certo modo, um tiro pela culatra. Pois em algum momento desse tipo de filme emerge o tom ‘sério’, e a comédia vira tragédia.
Zizek passa pela diferença entre o mal estalinista e o mal nazista para voltar à ideia de que nem a tragédia ou a comédia explicam Hitler e o Holocausto. Praticamente endossa como conclusão que o que pode ser dito é algo realmente não explicativo, a frase do filósofo da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno: ‘não existe poesia depois de Auschwitz’.
Posso concordar com tudo isso.  Posso acompanhar Adorno.
Hitler chegou no que chegou e, com ele, todos nós. Soa patético tentar confeccionar um objeto de cultura, como a poesia, por exemplo, após termos apagado a linha divisória entre o que é da cultura e o que é da pura natureza, isto é, o que é dos humanos em contraste com as bestas. Caso exista uma linha divisória, ela agora está construída com o polo positivo do lado das antigas bestas. Afinal, nós fizemos muito pior do que elas. Sobre a Humanidade e sobre cada homem sempre soará a trombeta do aviso: vocês poderiam não ter feito o que fizeram.
Seria tudo muito simples, mas horrível, se a solução nossa fosse a seguinte: não havendo linha divisória entre nós e as bestas, basta inverter a seta para nos qualificarmos como a pior das bestas e pronto.
Ora, por mais que toda a nossa ciência nos diga – como de fato diz – que estamos em continuidade com todo o resto do que há na Terra, e somos desdobramentos de outros animais, isso não remove um detalhe: diferenças por graus ainda assim são diferenças. Ou seja, não vamos perder tão cedo – e assim se espera – a noção de que podíamos não ter produzido o Holocausto. Ainda que isso seja uma ilusão, essa ilusão não sairá de nossas cabeças e, para muitos, não deverá sair mesmo. Essa ilusão, se perdida, nos jogaria para o abismo de um cinismo que durante todo o tempo esteve presente nos campos de concentração e na prática do nazi-fascismo. Nada havia de racional nos campos de concentração e, no entanto, na entrada de Auschwitz lia-se: ‘o trabalho liberta’.
É por isso, exatamente por isso, que a luta contra a política que gira em torno do fascismo, é a única coisa que jamais podemos deixar de ensinar aos nossos filhos.

[1] A pergunta dita ingênua e as referências a Slavoj Zizek são de seu livro de 2001, que só agora chega ao público brasileiro em tradução nacional: Alguém disse totalistarismo? São Paulo: Boitempo, 2013.
* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/hitler-se-revela-fi-lo-porque-qui-lo/

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