Sejamos ingênuos: ‘o que se passava na mente de Hitler enquanto agia de maneira tão cruel com os judeus’?
O filósofo esloveno Zizek diz que Hitler
pode ser visto como um ironista, “quase” no sentido que esse termo é
usado pelo filósofo americano Richard Rorty para caracterizar a si
mesmo.[1]
Ironia é a figura de linguagem que
nomeia o ato em que se afirma algo enquanto o que se quer dizer é
justamente o contrário. O termo ironista, de Rorty, pega uma parte do
significado de ironia. Quem diz uma ironia apenas lança uma afirmação, e
espera que a expressão por si só faça seu serviço. Caso tenha que
explicar algo mais, a ironia já terá se perdido. Então, quando Rorty se
qualifica como um ironista, diz que, como Sócrates, ele faz afirmações
que devem contar ou não com o assentimento dos que conversam com ele,
sem que se tenha de expor uma teoria profunda ou uma metafísica para
fundamentar o que disse.
Na tradição filosófica é exatamente
assim que Sócrates se fez irônico: ele levava a conversa até topar com
uma contradição fatal (aporia). Trata-se do “método da refutação”
(elenhós). Não requisitava nenhuma grande teoria ou qualquer metafísica
para fundamentar seu método. Platão, este sim, buscou fundamentos e, por
isso mesmo, criou a filosofia de um modo peculiar.
Zizek usa a noção de ironista para
responder, ainda que em parte, o que fez Hitler agir como agiu,
transformando-se no autor do Holocausto.
Hitler teria agido sob o impulso de um
ódio puro e primitivo, o ‘irracional’? Hitler foi um ‘charlatão’, alguém
que fingia ódio aos judeus apenas para chegar ao poder? Hitler foi
alguém sinceramente convencido de que os judeus eram maus e que só a
imposição da raça ariana salvaria o mundo? Ou ele foi um ‘artista do
mal’?
Zizek expõe as várias opções de
caracterização de Hitler e, enfim, diz aquilo que no nosso jargão é o
“fi-lo porque qui-lo”, do Jânio Quadros. Isto é, Hitler afirmou que
tinha de matar os judeus – e ponto final. Nada há além. Não teríamos um
objetivo de Hitler a ser desvendado. Não há o que explicar.
Bem, então, o Holocausto seria o “Mal
Absoluto”, do qual nada se pode dizer. Dizer algo já seria afrontoso e
desrespeitoso. Zizek acha que essa opção tem lá o seus inconvenientes:
se não podemos falar do Holocausto então estamos calados perigosamente
ao querer entender o antissemitismo e, dessa forma, ficamos impotentes
diante de conflitos políticos do Oriente Médio – que mexem com o mundo.
Mas ele confessa que há algo de
verdadeiro na ideia de “Mal Absoluto”, uma vez que o que fizemos com o
Holocausto foi coloca-lo em comédia, como em filmes do tipo A vida é bela.
Para o que não se pode explicar, usamos o riso. Mas essa solução acaba
sendo, de certo modo, um tiro pela culatra. Pois em algum momento desse
tipo de filme emerge o tom ‘sério’, e a comédia vira tragédia.
Zizek passa pela diferença entre o mal
estalinista e o mal nazista para voltar à ideia de que nem a tragédia ou
a comédia explicam Hitler e o Holocausto. Praticamente endossa como
conclusão que o que pode ser dito é algo realmente não explicativo, a
frase do filósofo da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno: ‘não existe
poesia depois de Auschwitz’.
Posso concordar com tudo isso. Posso acompanhar Adorno.
Hitler chegou no que chegou e, com ele,
todos nós. Soa patético tentar confeccionar um objeto de cultura, como a
poesia, por exemplo, após termos apagado a linha divisória entre o que é
da cultura e o que é da pura natureza, isto é, o que é dos humanos em
contraste com as bestas. Caso exista uma linha divisória, ela agora está
construída com o polo positivo do lado das antigas bestas. Afinal, nós
fizemos muito pior do que elas. Sobre a Humanidade e sobre cada homem
sempre soará a trombeta do aviso: vocês poderiam não ter feito o que
fizeram.
Seria tudo muito simples, mas horrível,
se a solução nossa fosse a seguinte: não havendo linha divisória entre
nós e as bestas, basta inverter a seta para nos qualificarmos como a
pior das bestas e pronto.
Ora, por mais que toda a nossa ciência
nos diga – como de fato diz – que estamos em continuidade com todo o
resto do que há na Terra, e somos desdobramentos de outros animais, isso
não remove um detalhe: diferenças por graus ainda assim são diferenças.
Ou seja, não vamos perder tão cedo – e assim se espera – a noção de que
podíamos não ter produzido o Holocausto. Ainda que isso seja uma
ilusão, essa ilusão não sairá de nossas cabeças e, para muitos, não
deverá sair mesmo. Essa ilusão, se perdida, nos jogaria para o abismo de
um cinismo que durante todo o tempo esteve presente nos campos de
concentração e na prática do nazi-fascismo. Nada havia de racional nos
campos de concentração e, no entanto, na entrada de Auschwitz lia-se: ‘o
trabalho liberta’.
É por isso, exatamente por isso, que a
luta contra a política que gira em torno do fascismo, é a única coisa
que jamais podemos deixar de ensinar aos nossos filhos.
[1]
A pergunta dita ingênua e as referências a Slavoj Zizek são de seu
livro de 2001, que só agora chega ao público brasileiro em tradução
nacional: Alguém disse totalistarismo? São Paulo: Boitempo, 2013.
* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/hitler-se-revela-fi-lo-porque-qui-lo/
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