sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

UM OUTRO JESUS

 Getty Images / Getty Images
 O Jesus histórico que emerge do livro de Aslan não tinha a ambição de fundar uma nova religião. Seu zelo pelo judaísmo tradicional o teria levado a combater tanto o poder dos sacerdotes quanto as tropas romanas 
(na foto,a tela "Ecce Homo", de Giovanni Francesco Barbieri)

Jesus de Nazaré, um homem que viveu na Galileia há 2 mil anos, não se parecia em nada com o Cristo cujo nascimento é celebrado no Natal. Mesmo assim, esse Jesus histórico é alguém tão digno de ser seguido e admirado quanto aquele que se cristalizou na religião como filho de Deus. Esta é a tese de Reza Aslan, sociólogo e historiador das religiões, nascido no Irã e criado nos EstadosUnidos. Reza é autor de "Zelota - A Vida e a Época de Jesus de Nazaré" (Zahar), que chegou ao primeiro lugar na lista de livros mais vendidos este ano nos Estados Unidos.

Anticlerical, combativo e essencialmente um revolucionário místico judeu, o Jesus histórico que emerge do livro de Aslan não tinha a ambição de fundar uma nova religião. Seu zelo pelo judaísmo tradicional (daí o nome que Aslan deu ao livro) o teria levado a combater tanto o poder dos sacerdotes do Templo de Jerusalém quanto as tropas romanas que ocupavam o território de Israel. Aslan também relata as disputas entre Paulo de Tarso e Tiago, possível irmão de Jesus, pelos fundamentos da doutrina do Nazareno, depois de crucificado.

Nos Estados Unidos, "Zelota" recebeu críticas pesadas, não pela maneira heterodoxa (mas apoiada em pesquisas acadêmicas) como representa o fundador do cristianismo, mas pelo fato de ter sido escrito por um muçulmano. Em julho, sua entrevista para o canal de televisão Fox News, de inclinação ultraconservadora, o tornou mundialmente famoso na internet. Na ocasião, viu-se obrigado a passar dez minutos justificando que um muçulmano escreva sobre Jesus, apesar de seu diploma de Harvard e de ser o autor de obras respeitadas, como "How to Win a Cosmic War" [Como Vencer uma Guerra Cósmica] e "No God But God" [Nenhum Deus Senão Deus], sobre o Islã.

Nascido em uma família muçulmana não praticante, que fugiu do Irã em seguida à revolução islâmica de 1979, Aslan criou uma publicação on-line ("Aslan Media"), para difusão de informações e opiniões sobre questões políticas, sociais e culturais relativas ao Oriente Médio e comunidades muçulmanas espalhadas pelo mundo. O historiador conta que se tornou cristão evangélico durante a adolescência, acostumado a ler as Escrituras como se contivessem fatos literais. Desiludido ao empreender seus estudos de religião e descobrir que a leitura literal não tem sentido, abandonou a religião, para mais tarde reconverter-se à fé de seus pais, mas com uma perspectiva igualmente pouco ortodoxa. "Para mim, religião é linguagem. Sou muçulmano porque me considero uma pessoa espiritual e o Islã é a linguagem que melhor expressa minha espiritualidade."

Valor: O retrato de Jesus que aparece em seu livro é de um indivíduo extremamente anticlerical, o que o torna curiosamente parecido com Voltaire, Nietzsche e Deleuze.
Reza Aslan: Concordo. É por isso que Jesus, o homem, é tão digno de ser seguido quanto Cristo. Sua mensagem de resistência ao poder, de combate à dominação e à injustiça, de rejeição a quem se apresenta como guardião da salvação, não por ter feito algo em particular, mas por ser poderoso, é o que faz a grandiosidade de Jesus. Esse é o Jesus que quero conhecer.

Valor: Vários livros e filmes se apropriam da figura de Jesus para reinterpretá-lo à sua maneira, de Nikos Kazantzakis com "A Última Tentação de Cristo", ao Monty Python, em "A Vida de Brian". O que faz de Jesus um personagem tão variado?
Aslan: Uma coisa importante é que sabemos muito pouco sobre o Jesus que realmente existiu. No tempo dos primeiros cristãos, quando a religião se espalhava, a mensagem pôde ser adaptada para o público romano, em vez de se limitar aos judeus. O fato de a figura de Jesus ser fugidia ajudou muito a fazer do cristianismo uma religião tão diversificada e global. As pessoas podem olhar para o mesmo material e tirar dele uma dúzia de diferentes interpretações. Nos Estados Unidos, há 200 anos, tanto os senhores de escravos quanto os abolicionistas justificavam suas posições usando versículos da Bíblia: os mesmos versículos! Esse é o poder da Escritura e o poder da religião. Que uma religião possa se adaptar às necessidades dos fiéis é o que faz com que sobreviva. Há várias religiões mortas no mundo. Não porque sejam erradas, mas porque não conseguem evoluir.

"Não vejo conflito entre uma pessoa de fé e um historiador. 
A pessoa de fé pergunta o que é possível.
 O historiador, o que é provável"

Valor: Alguns autores defendem a ideia de que o Jesus histórico não existiu, mas é um compêndio de histórias que corriam pela Palestina na época. Seu livro parte do pressuposto de que existe um Jesus histórico, mas não chega a desautorizar essa leitura.
Aslan: Alguns acadêmicos usam esse argumento, mas não muitos. É quase um consenso que um homem chamado Jesus de Nazaré existiu, mas isso é só o que sabemos. Era judeu, viveu no século I, começou um movimento judaico e foi executado por Roma. Mas essa afirmação não diz nada. A questão não é se ele existiu ou não, mas o que disse, o que fez, o que quis dizer.

Valor: Se o cristianismo depende não somente dos ensinamentos, mas da crença em eventos históricos, o que aconteceria a essa fé se ficasse demonstrado que o verdadeiro Jesus de Nazaré era como o livro o descreve?
Aslan: Imagino que possa impactar algumas pessoas, mas isso depende delas. O cristianismo é uma instituição feita pelo ser humano. Vem em milhares de formas diferentes, embora desde o século IV haja uma ortodoxia. Há inúmeras maneiras de pensar em quem foi Jesus e considerar-se cristão. Não vejo conflito entre uma pessoa de fé e um historiador. A pessoa de fé pergunta o que é possível. O historiador, o que é provável. Se me perguntarem: é possível que Jesus tenha nascido em Belém? Sim. É provável? Não. De maneira nenhuma penso que a fé de um cristão precise ser afetada por elementos históricos. O cristianismo, como instituição, é construído em cima de decisões feitas por seres humanos sobre o que Jesus disse. Não é construído sobre o próprio Jesus.

Valor: Mesmo que a fé dependa de eventos transcendentes? O livro descreve os relatos dos Evangelhos como tendo sido talhados, décadas depois, como forma de convencimento.
Aslan: São mitos. Essa palavra tem conotação negativa, mas não deveria ter. Mitos são histórias sustentadas sobre fatos universalmente vistos como não históricos, mas cujas verdades são a parte mais relevante. A mente científica é construída para pensar que, se algo não é empiricamente verificável, é falso. Não é assim que religiões funcionam. A fé não é sobre verificações empíricas, mas sobre verdades que sustentam uma história. É assim que funcionam os mitos. As pessoas que os desenvolveram tentavam expressar verdades sobre a humanidade, sobre Deus, o papel da criação e do criador. Fazendo isso, escreveram essas palavras que só nos últimos 200 anos são lidas como algo literal. Elas nunca foram feitas para serem lidas assim. O problema não está nas histórias. Está na maneira como nós as lemos.

Valor: A "evidência histórica" se tornou importante no debate entre religiões, ultimamente. Ouvem-se argumentos de que não há indícios da existência de Moisés ou Jesus, mas afirma-se que Maomé e Buda são pessoas cuja existência é possível demonstrar.
Aslan: Como seres humanos modernos, fomos, desde a revolução científica, ensinados entender que a verdade e o fato são a mesma coisa. O argumento segundo o qual é melhor seguir Maomé, porque a probabilidade de que ele existiu é maior do que no caso de Jesus, é um produto dessa maneira de pensar. Esse tipo de pensamento é incorreto. Quando se trata de histórias do sagrado, verdade e fato são coisas diferentes.

Valor: O cristianismo se espalhou rapidamente no mundo romano. O Império estava maduro para receber uma religião universalista?
Aslan: Nos primeiros anos, o cristianismo não era uma religião universalista. Depois da destruição de Jerusalém, ela se torna uma religião romanizada, facilmente adotável no império. O cristianismo tem pouca semelhança com o judaísmo de Jesus, porque, a cada geração de novos cristãos, a religião era transformada. No século IV, há uma infinidade de tipos de cristianismo. Alguns cristãos acreditavam que Jesus fosse inteiramente Deus, outros que era inteiramente homem, outros que era ambos, outros pensavam que o Deus de Jesus era diferente do Deus do Antigo Testamento. Maneiras diferentes de pensar no que essa religião significava. A religião que conhecemos nasceu só depois que Constantino adotou o cristianismo. Antes, era maleável. Podia ser sincretizada com o que uma pessoa já acreditasse. Alguém segue o deus do solstício de inverno? Ora, Jesus nasceu no solstício: o Natal. César é chamado de filho de Deus? Ora, Jesus é filho de Deus. E depois que se torna a religião oficial de Roma, começa a se espalhar pela força da espada, mas esta é outra etapa.

Valor: Em julho, sua entrevista na Fox News rodou o mundo. O senhor imaginava que o clima religioso estava tão tenso nos Estados Unidos? Sua reação parece ser de surpresa.
Aslan: Fiquei surpreso porque passamos os dez minutos da entrevista discutindo se eu tinha o direito de escrever o livro. Mas fiquei feliz com a discussão pública que essa entrevista gerou, não só nos Estados Unidos, mas ao redor do mundo, sobre o papel da religião na sociedade, a academia e a religião, o viés midiático. O livro chegou a ser o mais vendido no país e esse tipo de sucesso faz dele uma fonte de polarização. Algumas pessoas adoraram, outras detestaram. Há acadêmicos que o defenderam e que o atacaram. Alguns cristãos apoiaram, outros condenaram. Os Estados Unidos são um país muito dividido e essa se tornou mais uma razão para a divisão se manifestar.
 
Aslan: "O cristianismo é construído em cima de decisões de seres humanos sobre o que Jesus disse. 
A questão não é se ele existiu ou não, mas o que disse, o que fez, o que quis dizer"
 
Valor: O senhor escreveu sobre a expulsão de cristãos do Oriente Médio e a situação de judeus e muçulmanos nos Estados Unidos. Também há notícias do crescimento de grupos extremistas nacionalistas na Europa. No Brasil há ataques a religiões tradicionais africanas por cristãos extremistas. O multiculturalismo está em risco?
Aslan: Na Europa, tem sido dito que o multiculturalismo falhou. Mas as pessoas que pensam assim costumam ser brancos que, na verdade, querem dizer que seus bairros não são mais brancos como costumavam ser. O multiculturalismo é um sucesso estrondoso nos Estados Unidos. Os demógrafos têm dito que, em poucas décadas, a maioria da população do país pertencerá ao que hoje é uma minoria. A maioria dos americanos festejam isso. Na Europa, essa integração, a diversidade racial, é novidade. Uma geração atrás, era possível caminhar para todos os lados, na França e nos Países Baixos, e tudo que se via eram rostos brancos. Agora se veem negros, mestiços, árabes, diferentes comidas, diferentes tradições. Há duas respostas para isso: ou festejar, encontrar maneiras de mudar quem somos, como nos identificamos, para refletir essa diversidade, ou pensar nisso como uma ameaça e falar em morte do multiculturalismo.

Valor: Alguns dizem que o século XXI é a era do retorno da religião. No século XX, as pessoas teriam abandonado suas fés e agora estariam voltando. O senhor enxerga esse fenômeno?
Aslan: Eu diria que é a volta da identificação por meio da religião, o que é diferente do retorno da própria religião. As pessoas estão começando a se identificar mais livremente a partir da identificação religiosa. Parte disso tem a ver com a falha do nacionalismo secular, parte tem a ver com a globalização, que encorajou as pessoas a parar de pensar em si primeiro em termos nacionalistas, e criar identidades coletivas em torno de outras formas de identidade, mais primárias. A própria religião mudou. A pessoa que hoje se diz cristã quer dizer algo diferente de uma pessoa que dizia isso há um século.

Valor: Em que sentido?
Aslan: Essas pessoas provavelmente têm uma concepção diferente de história, de teologia. O contexto em que vivem provavelmente favorece uma concepção mais universal do significado do cristianismo do que há cem anos. Hoje, é possível ser cristão e acreditar em evolução, o que não era provável há um século.

Valor: Como podemos interpretar a sequência de livros recentes sobre espiritualidade agnóstica, liturgia ateia e assim por diante?
Aslan: Acho ótimo. Nos Estados Unidos, isso é chamado de humanismo secular. Um grande amigo meu é um capelão humanista em Harvard. Há um entendimento, particularmente entre os jovens, de que é preciso buscar espiritualidade sem religião, e um desejo de organizar o comportamento ético sem recorrer às limitações dogmáticas de uma religião específica. Esse movimento está crescendo muito rapidamente.

Valor: Do jeito como é apresentado, muitas vezes esse movimento passa a impressão de querer imitar formas superficiais das religiões, como cerimônias, paramentos, rituais, sem entrar naquilo que elas têm de mais profundo.
Aslan: É verdade, mas mostra que o que a religião tem de mais atraente é o fato de oferecer um senso de comunidade muito forte. As pessoas que não querem se envolver de fato com as religiões, mas querem ter esse sentido de comunidade, criam seus próprios rituais e ideais. Convenhamos, isso é o cerne da religião, eu nunca disse que não era religião. Mas é simplesmente outro tipo de religião.
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Reportagem por Diego Viana | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 06/12/2013

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