Jesus de Nazaré, um homem que viveu na Galileia há 2 mil anos, não se
parecia em nada com o Cristo cujo nascimento é celebrado no Natal.
Mesmo assim, esse Jesus histórico é alguém tão digno de ser seguido e
admirado quanto aquele que se cristalizou na religião como filho de
Deus. Esta é a tese de Reza Aslan, sociólogo e historiador das
religiões, nascido no Irã e criado nos EstadosUnidos. Reza é autor de
"Zelota - A Vida e a Época de Jesus de Nazaré" (Zahar), que chegou ao
primeiro lugar na lista de livros mais vendidos este ano nos Estados
Unidos.
Anticlerical, combativo e essencialmente um revolucionário místico
judeu, o Jesus histórico que emerge do livro de Aslan não tinha a
ambição de fundar uma nova religião. Seu zelo pelo judaísmo tradicional
(daí o nome que Aslan deu ao livro) o teria levado a combater tanto o
poder dos sacerdotes do Templo de Jerusalém quanto as tropas romanas que
ocupavam o território de Israel. Aslan também relata as disputas entre
Paulo de Tarso e Tiago, possível irmão de Jesus, pelos fundamentos da
doutrina do Nazareno, depois de crucificado.
Nos Estados Unidos, "Zelota" recebeu críticas pesadas, não pela
maneira heterodoxa (mas apoiada em pesquisas acadêmicas) como representa
o fundador do cristianismo, mas pelo fato de ter sido escrito por um
muçulmano. Em julho, sua entrevista para o canal de televisão Fox News,
de inclinação ultraconservadora, o tornou mundialmente famoso na
internet. Na ocasião, viu-se obrigado a passar dez minutos justificando
que um muçulmano escreva sobre Jesus, apesar de seu diploma de Harvard e
de ser o autor de obras respeitadas, como "How to Win a Cosmic War"
[Como Vencer uma Guerra Cósmica] e "No God But God" [Nenhum Deus Senão
Deus], sobre o Islã.
Nascido em uma família muçulmana não praticante, que fugiu do Irã em
seguida à revolução islâmica de 1979, Aslan criou uma publicação on-line
("Aslan Media"), para difusão de informações e opiniões sobre questões
políticas, sociais e culturais relativas ao Oriente Médio e comunidades
muçulmanas espalhadas pelo mundo. O historiador conta que se tornou
cristão evangélico durante a adolescência, acostumado a ler as
Escrituras como se contivessem fatos literais. Desiludido ao empreender
seus estudos de religião e descobrir que a leitura literal não tem
sentido, abandonou a religião, para mais tarde reconverter-se à fé de
seus pais, mas com uma perspectiva igualmente pouco ortodoxa. "Para mim,
religião é linguagem. Sou muçulmano porque me considero uma pessoa
espiritual e o Islã é a linguagem que melhor expressa minha
espiritualidade."
Valor: O retrato de Jesus que aparece em seu
livro é de um indivíduo extremamente anticlerical, o que o torna
curiosamente parecido com Voltaire, Nietzsche e Deleuze.
Reza Aslan: Concordo. É por isso que Jesus, o homem,
é tão digno de ser seguido quanto Cristo. Sua mensagem de resistência
ao poder, de combate à dominação e à injustiça, de rejeição a quem se
apresenta como guardião da salvação, não por ter feito algo em
particular, mas por ser poderoso, é o que faz a grandiosidade de Jesus.
Esse é o Jesus que quero conhecer.
Valor: Vários livros e filmes se apropriam da
figura de Jesus para reinterpretá-lo à sua maneira, de Nikos Kazantzakis
com "A Última Tentação de Cristo", ao Monty Python, em "A Vida de
Brian". O que faz de Jesus um personagem tão variado?
Aslan: Uma coisa importante é que sabemos muito
pouco sobre o Jesus que realmente existiu. No tempo dos primeiros
cristãos, quando a religião se espalhava, a mensagem pôde ser adaptada
para o público romano, em vez de se limitar aos judeus. O fato de a
figura de Jesus ser fugidia ajudou muito a fazer do cristianismo uma
religião tão diversificada e global. As pessoas podem olhar para o mesmo
material e tirar dele uma dúzia de diferentes interpretações. Nos
Estados Unidos, há 200 anos, tanto os senhores de escravos quanto os
abolicionistas justificavam suas posições usando versículos da Bíblia:
os mesmos versículos! Esse é o poder da Escritura e o poder da religião.
Que uma religião possa se adaptar às necessidades dos fiéis é o que faz
com que sobreviva. Há várias religiões mortas no mundo. Não porque
sejam erradas, mas porque não conseguem evoluir.
"Não vejo conflito entre uma pessoa de fé e
um historiador.
A pessoa de fé pergunta o que é possível.
O historiador, o que é provável"
Valor: Alguns autores defendem a ideia de que o
Jesus histórico não existiu, mas é um compêndio de histórias que corriam
pela Palestina na época. Seu livro parte do pressuposto de que existe
um Jesus histórico, mas não chega a desautorizar essa leitura.
Aslan: Alguns acadêmicos usam esse argumento, mas
não muitos. É quase um consenso que um homem chamado Jesus de Nazaré
existiu, mas isso é só o que sabemos. Era judeu, viveu no século I,
começou um movimento judaico e foi executado por Roma. Mas essa
afirmação não diz nada. A questão não é se ele existiu ou não, mas o que
disse, o que fez, o que quis dizer.
Valor: Se o cristianismo depende não somente dos
ensinamentos, mas da crença em eventos históricos, o que aconteceria a
essa fé se ficasse demonstrado que o verdadeiro Jesus de Nazaré era como
o livro o descreve?
Aslan: Imagino que possa impactar algumas pessoas,
mas isso depende delas. O cristianismo é uma instituição feita pelo ser
humano. Vem em milhares de formas diferentes, embora desde o século IV
haja uma ortodoxia. Há inúmeras maneiras de pensar em quem foi Jesus e
considerar-se cristão. Não vejo conflito entre uma pessoa de fé e um
historiador. A pessoa de fé pergunta o que é possível. O historiador, o
que é provável. Se me perguntarem: é possível que Jesus tenha nascido em
Belém? Sim. É provável? Não. De maneira nenhuma penso que a fé de um
cristão precise ser afetada por elementos históricos. O cristianismo,
como instituição, é construído em cima de decisões feitas por seres
humanos sobre o que Jesus disse. Não é construído sobre o próprio Jesus.
Valor: Mesmo que a fé dependa de eventos
transcendentes? O livro descreve os relatos dos Evangelhos como tendo
sido talhados, décadas depois, como forma de convencimento.
Aslan: São mitos. Essa palavra tem conotação
negativa, mas não deveria ter. Mitos são histórias sustentadas sobre
fatos universalmente vistos como não históricos, mas cujas verdades são a
parte mais relevante. A mente científica é construída para pensar que,
se algo não é empiricamente verificável, é falso. Não é assim que
religiões funcionam. A fé não é sobre verificações empíricas, mas sobre
verdades que sustentam uma história. É assim que funcionam os mitos. As
pessoas que os desenvolveram tentavam expressar verdades sobre a
humanidade, sobre Deus, o papel da criação e do criador. Fazendo isso,
escreveram essas palavras que só nos últimos 200 anos são lidas como
algo literal. Elas nunca foram feitas para serem lidas assim. O problema
não está nas histórias. Está na maneira como nós as lemos.
Valor: A "evidência histórica" se tornou
importante no debate entre religiões, ultimamente. Ouvem-se argumentos
de que não há indícios da existência de Moisés ou Jesus, mas afirma-se
que Maomé e Buda são pessoas cuja existência é possível demonstrar.
Aslan: Como seres humanos modernos, fomos, desde a
revolução científica, ensinados entender que a verdade e o fato são a
mesma coisa. O argumento segundo o qual é melhor seguir Maomé, porque a
probabilidade de que ele existiu é maior do que no caso de Jesus, é um
produto dessa maneira de pensar. Esse tipo de pensamento é incorreto.
Quando se trata de histórias do sagrado, verdade e fato são coisas
diferentes.
Valor: O cristianismo se espalhou rapidamente no mundo romano. O Império estava maduro para receber uma religião universalista?
Aslan: Nos primeiros anos, o cristianismo não era
uma religião universalista. Depois da destruição de Jerusalém, ela se
torna uma religião romanizada, facilmente adotável no império. O
cristianismo tem pouca semelhança com o judaísmo de Jesus, porque, a
cada geração de novos cristãos, a religião era transformada. No século
IV, há uma infinidade de tipos de cristianismo. Alguns cristãos
acreditavam que Jesus fosse inteiramente Deus, outros que era
inteiramente homem, outros que era ambos, outros pensavam que o Deus de
Jesus era diferente do Deus do Antigo Testamento. Maneiras diferentes de
pensar no que essa religião significava. A religião que conhecemos
nasceu só depois que Constantino adotou o cristianismo. Antes, era
maleável. Podia ser sincretizada com o que uma pessoa já acreditasse.
Alguém segue o deus do solstício de inverno? Ora, Jesus nasceu no
solstício: o Natal. César é chamado de filho de Deus? Ora, Jesus é filho
de Deus. E depois que se torna a religião oficial de Roma, começa a se
espalhar pela força da espada, mas esta é outra etapa.
Valor: Em julho, sua entrevista na Fox News
rodou o mundo. O senhor imaginava que o clima religioso estava tão tenso
nos Estados Unidos? Sua reação parece ser de surpresa.
Aslan: Fiquei surpreso porque passamos os dez
minutos da entrevista discutindo se eu tinha o direito de escrever o
livro. Mas fiquei feliz com a discussão pública que essa entrevista
gerou, não só nos Estados Unidos, mas ao redor do mundo, sobre o papel
da religião na sociedade, a academia e a religião, o viés midiático. O
livro chegou a ser o mais vendido no país e esse tipo de sucesso faz
dele uma fonte de polarização. Algumas pessoas adoraram, outras
detestaram. Há acadêmicos que o defenderam e que o atacaram. Alguns
cristãos apoiaram, outros condenaram. Os Estados Unidos são um país
muito dividido e essa se tornou mais uma razão para a divisão se
manifestar.
Valor: O senhor escreveu sobre a expulsão de
cristãos do Oriente Médio e a situação de judeus e muçulmanos nos
Estados Unidos. Também há notícias do crescimento de grupos extremistas
nacionalistas na Europa. No Brasil há ataques a religiões tradicionais
africanas por cristãos extremistas. O multiculturalismo está em risco?
Aslan: Na Europa, tem sido dito que o
multiculturalismo falhou. Mas as pessoas que pensam assim costumam ser
brancos que, na verdade, querem dizer que seus bairros não são mais
brancos como costumavam ser. O multiculturalismo é um sucesso estrondoso
nos Estados Unidos. Os demógrafos têm dito que, em poucas décadas, a
maioria da população do país pertencerá ao que hoje é uma minoria. A
maioria dos americanos festejam isso. Na Europa, essa integração, a
diversidade racial, é novidade. Uma geração atrás, era possível caminhar
para todos os lados, na França e nos Países Baixos, e tudo que se via
eram rostos brancos. Agora se veem negros, mestiços, árabes, diferentes
comidas, diferentes tradições. Há duas respostas para isso: ou festejar,
encontrar maneiras de mudar quem somos, como nos identificamos, para
refletir essa diversidade, ou pensar nisso como uma ameaça e falar em
morte do multiculturalismo.
Valor: Alguns dizem que o século XXI é a era do
retorno da religião. No século XX, as pessoas teriam abandonado suas fés
e agora estariam voltando. O senhor enxerga esse fenômeno?
Aslan: Eu diria que é a volta da identificação por
meio da religião, o que é diferente do retorno da própria religião. As
pessoas estão começando a se identificar mais livremente a partir da
identificação religiosa. Parte disso tem a ver com a falha do
nacionalismo secular, parte tem a ver com a globalização, que encorajou
as pessoas a parar de pensar em si primeiro em termos nacionalistas, e
criar identidades coletivas em torno de outras formas de identidade,
mais primárias. A própria religião mudou. A pessoa que hoje se diz
cristã quer dizer algo diferente de uma pessoa que dizia isso há um
século.
Valor: Em que sentido?
Aslan: Essas pessoas provavelmente têm uma concepção
diferente de história, de teologia. O contexto em que vivem
provavelmente favorece uma concepção mais universal do significado do
cristianismo do que há cem anos. Hoje, é possível ser cristão e
acreditar em evolução, o que não era provável há um século.
Valor: Como podemos interpretar a sequência de livros recentes sobre espiritualidade agnóstica, liturgia ateia e assim por diante?
Aslan: Acho ótimo. Nos Estados Unidos, isso é
chamado de humanismo secular. Um grande amigo meu é um capelão humanista
em Harvard. Há um entendimento, particularmente entre os jovens, de que
é preciso buscar espiritualidade sem religião, e um desejo de organizar
o comportamento ético sem recorrer às limitações dogmáticas de uma
religião específica. Esse movimento está crescendo muito rapidamente.
Valor: Do jeito como é apresentado, muitas vezes
esse movimento passa a impressão de querer imitar formas superficiais
das religiões, como cerimônias, paramentos, rituais, sem entrar naquilo
que elas têm de mais profundo.
Aslan: É verdade, mas mostra que o que a religião
tem de mais atraente é o fato de oferecer um senso de comunidade muito
forte. As pessoas que não querem se envolver de fato com as religiões,
mas querem ter esse sentido de comunidade, criam seus próprios rituais e
ideais. Convenhamos, isso é o cerne da religião, eu nunca disse que não
era religião. Mas é simplesmente outro tipo de religião.
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