domingo, 27 de dezembro de 2009

Arte iluminada da Clarice misteriosa

Leda Tenório da Motta*


Benjamin Moser produz obra bem documentada,
mas acaba reforçando mitologia em torno da vida e
do ofício da ficcionista

Sensação atual no mundo das letras, a biografia de Clarice Lispector por Benjamin Moser é empenhada, extremamente documentada, extremamente anotada. Estamos falando de um texto de quase 800 páginas, que evolui dentro do melhor modelo do gênero, aquele que articula a vida e a obra do biografado, mais buscando compreender a vida através da obra do que o contrário, o que, neste caso, é uma homenagem prestada à literatura, e uma providência antirreducionista. O que não o impede de ser também uma imensa pesquisa de campo, que, aliás, nos revela um jovem brasilianista norte-americano em formação já bastante íntimo do Brasil. Capacitado assim para a incursão de certo fôlego que faz aos bastidores políticos e sociais recifenses e cariocas implicados em sua prospecção. E sem que esse plano de cultura seja o único perseguido, já que - sendo judeu como a sua musa -, o autor vai pôr insistentemente o dedo em algo que nós mesmos nunca havíamos tocado, pelo menos não seriamente: o judaísmo da escritora.

Daí o livro começar pelo antissemitismo russo, oferecendo um painel histórico ligeiro mas eficiente de um período que envolve pogroms, primeira guerra mundial, revolução bolchevique e a posição desamparada dos judeus no seio da primeira revolução comunista, que é tudo o que está na origem da saída dos Lispectors da Ucrânia, no início dos anos de 1920. E seguir fixado nas marcas que tudo isso só pode ter deixado em Clarice - que só agora descobrimos se chamava Chaia - mesmo que a caçula daquele pequeno comerciante que aportou em Pernambuco, em 1921, vindo com a família de albergues de refugiados na Romênia, para ganhar a vida como mascate na América do Sul, não fosse nascida quando a fuga começou. O que não a teria impedido de se lembrar de tudo, bem ao contrário.

Trata-se de uma bela contribuição aos estudos clariceanos, de que já não poderemos abrir mão, para o futuro. Também porque, como têm notado todas as reviews feitas nos Estados Unidos, desde o lançamento da versão original - que quase coincide com o da tradução brasileira por José Geraldo Couto, o que fala de operações de marketing bem orquestradas -, Clarice Lispector sempre esteve envolta em mistério. E agora temos essa ponte que se estabelece entre essa ferida original do "nome roubado" e a impenetrabilidade da autora. E essa mãe imigrante judia que está por trás de tudo, de que se descobre, nos registros mais fechados da família, finalmente devassados, que foi estuprada num daqueles fatídicos pogroms, o que a levaria a contrair sífilis, morrendo pouco depois da chegada ao Brasil. O que, entre outros horrores fantasmáticos, tinha tudo para ser introjetado como culpa.

Entretanto, o crítico que secunda o biógrafo é mediano. E nada impede este trabalho, bem mais interessante enquanto levantamento de fatos e só fatos, de cair na própria armadilha que denuncia: "No vácuo de informações floresceu toda uma mitologia." Pois nada mais mitológico, mais bolha retórica, mais giro no vazio que esta fraseologia que prospera na introdução, desfazendo por um lado o que foi construído por outro: "Ela nunca perdeu inteiramente a esperança de ser vista como uma pessoa real", "ficou mortificada quando Maria Bethânia se jogou aos seus pés exclamando: minha deusa!", "num texto melancólico, descreve sua rebelião contra sua imagem", "era uma outsider".... É essa a inflexão. E é impossível ler essas linhas sem lembrar outras de Roland Barthes sobre a mistificação retorcida desse tipo de reconversão do artista inacessível à condição prosaica, que nada mais seria que uma hagiografia disfarçada, que desfruta do segredo do gênio, no momento mesmo em que ele é convidado a descer ao patamar do homem comum.

Participa dessa mesma construção do prestígio da estranheza a insistência do biógrafo na beleza de Clarice: "Os olhos de gata e seu olhar intenso, que ninguém conseguia suportar por muito tempo...", "a irmã Tânia recordava que Clarice era espantosamente bonita".... Ele quer lhe dar um physique du role, como se o escritor precisasse necessariamente de um, e João Cabral não fosse João Cabral, sendo externamente um perfeito funcionário do governo brasileiro. Mas a glamourização desumaniza, pela equiparação daquela máscara inquietante que todos conhecemos ao rosto da star. E parece explicar por que não há menção no livro à desfiguração final desse rosto, quando do episódio em que a escritora se deixa adormecer com o cigarro na boca, perdendo fisicamente a face.

Mas é o apelo ao judaísmo que mais incomoda. Não porque Moser nos lembre que Clarice se casou com um "gói", num tempo em que ninguém na colônia ousaria fazê-lo. Nem porque ele é o primeiro a nos dizer o quanto ela era brasileira, e como brasileira, nordestina. Nem porque ele é o mais bem posicionado para saber quanto havia de irreligioso ou de laico naquela maneira da escritora de sentir-se insuportável no mundo. Mas porque o vínculo que não cansa de estabelecer entre a escritura de Clarice e este primeiro pertencimento, que lhe rende seu não-pertencimento, faz pouco do fato de que todo grande escritor habita um não-lugar. Ou de que toda literatura é de testemunho.

A resenhista de Clarice, para o Los Angeles Times escrevia, em julho passado, que Moser trata a bizarrice de Clarice "very gently". É verdade. Já a resenhista do New York Times escrevia, em agosto passado, que, graças a Moser, se supera agora o culto da pessoa e o da feminista - este último é bem aquele que lhe abriu as portas do mundo francês - , e a escritora pode entrar no cânone literário. Não é completamente verdade.

*Leda Tenório da Motta, professora da PUC-SP, é autora, entre outros, de Proust - A Violência Sutil do Riso (Perspectiva)
Clarice,
Benjamin Moser
Cosac Naify
648 págs., R$ 79

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