sábado, 26 de dezembro de 2009

Sou brasiliense

Cristovam Buarque*



Saí de Recife em 1970, e continuei fora do Brasil até 1979. Quando encontrei condições políticas para voltar, escolhi Brasília. Naquele tempo, Brasília não votava para nenhum cargo. O resto do país, mesmo com a ditadura, elegia governadores, prefeitos, vereadores, deputados, senadores. Brasília era uma cidade sem políticos locais. Ninguém optava por Brasília pensando em carreira política.

Brasília foi povoada por pessoas que vieram, no final dos anos 1950 e durante a década de 1960, mesmo depois, para construir uma cidade, a nova capital. Não foi fácil deixar famílias, locais, ambientes, amizades e vir para o Planalto Central. Brasília é feita, portanto, de heróis brasileiros, que vieram fazer um país grande por meio de uma grande capital. Somos candangos.

Em 2010 a cidade fará 50 anos, e alguns daqueles primeiros que aqui vieram ainda estão vivos, e podem olhar ao redor e ver a cidade que fizeram. Talvez nenhum outro grupo humano consiga se orgulhar tanto de ter feito uma metrópole, durante o seu curto prazo de vida, quanto os brasilienses. Os que aqui vieram escolheram Brasília, no lugar das cidades onde nasceram ou das grandes capitais, porque têm espírito de aventura, ousadia para o novo.

Em pouco tempo, fizemos uma das maiores cidades do Brasil, uma universidade de qualidade, a melhor educação de base, uma população participante que deu exemplo disso na luta pelas Diretas Já, pela Constituinte, pela Anistia, e principalmente pelo impeachment presidencial de 1992. E temos tido orgulho disso. Cada brasiliense tem o direito de sentir-se orgulhoso de ter sido construtor de uma nova capital.

Sabemos que lá fora essa aventura, essa ousadia, esse orgulho que sentimos por sermos brasilienses não são reconhecidos, porque a cidade passou a simbolizar a corrupção política. Mas até mesmo nos piores momentos de corrupção, costumávamos dizer que levávamos a culpa por causa de políticos eleitos nos outros estados que vinham exercer seus mandatos na cidade e no prédio que nós tínhamos construído.

Mas isso mudou. No começo do século 21, tivemos a cassação de um senador eleito por nós, depois outro foi forçado a renunciar, depois mais um. Nas últimas semanas, assistimos a vídeos de políticos de Brasília recebendo dinheiro vivo sem nenhuma explicação convincente. Por causa disso, a imagem da cidade dos heróis candangos está arranhada. Mesmo em outras cidades, onde a corrupção não é menor do que em Brasília, seus moradores estão menos manchados do que nós, brasilienses.

Apesar disso, devemos continuar sentindo orgulho da nossa cidade e do nosso trabalho, de sermos construtores da capital e de uma cidade que é maior do que a capital: a Brasília patrimônio histórico da humanidade, a Brasília industrial e comercial, a Brasília da educação, da faixa de pedestre, a Brasília que inventou a Bolsa Escola e outros projetos que já foram exportados para outros estados e até para o exterior.

Somos orgulhosos de termos construído uma cidade onde antes havia apenas um descampado Planalto Central. Orgulhosos da aventura de termos deixado para trás a segurança de nossos lugares natais e virmos construir uma nova cidade. Sobretudo, devemos nos lembrar e dizer que, dos 2 milhões de brasilienses, apenas 36 são políticos eleitos, dois em cada 100 mil.

Porém, somos todos eleitores, e não podemos fugir da nossa responsabilidade. Como eleito e eleitor, sinto-me duplamente responsável. Sou um dos 36, e sou um dos 2 milhões. Mesmo assim, mantenho meu orgulho de ser brasiliense e o senso de responsabilidade de completarmos o que ainda não conseguimos fazer: construir a Brasília moral ao lado da Brasília urbana que construímos nesses 50 anos.

O primeiro passo para construirmos essa Brasília moral é não nos deixarmos engolir pela sensação de vergonha, e mantermos a cabeça erguida por termos construído uma cidade nova, a capital moderna, a Brasília dos brasilienses que vão à Rodoviária, aos mercados e feiras, que trabalham e ganham seus salários com dignidade. O segundo é não esconder os pecados cometidos por eleitos e eleitores. O terceiro é não ficarmos alheios aos problemas, assumirmos nossa responsabilidade como eleitos e eleitores e trabalharmos com afinco para reconstruir a imagem de candangos, construtores, ousados cidadãos de um país em construção. O quarto é sermos construtores da ética, não só de prédios, vias, pontes e viadutos. Isso exige decência dos eleitos e responsabilidade dos eleitores. Então, poderemos afirmar com ainda mais orgulho: somos brasilienses.
*Senador (PDT-DF), professor titular da Universidade de Brasília (UnB)

FONTE: Correio Braziliense online, 26/12/2009

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