Robson Campos Leite*
Refletir sobre utopia – em especial na época em que se renovam os sonhos com as preparações cristãs do Natal e do Ano-Novo – é algo bonito, pois nos remete ao futuro enchendo-nos de esperança. A nossa sociedade, tão carente de valores coletivos, vive uma crise que eu tomei a liberdade de batizar com o nome de “crise da privatização dos sonhos”.
A “minha” carreira, o “meu” salário, o “meu” carro, a “minha” casa estão, infelizmente, ganhando cada vez mais espaço ao “nosso” emprego, à “nossa” cidade, ao “nosso” estado e ao “nosso” país. Poucos, infelizmente, são motivados a colocar o “bem comum acima de tudo” na luta cotidiana da vida. A sociedade moderna, que está conseguindo se destruir pela imposição desse fenômeno do individualismo como pilar de sustentação do neoliberalismo, está doente. É preciso, urgentemente, de um remédio. De uma solução. E ela não virá apenas dos políticos ou dos líderes globais, mas virá sobretudo do coletivo. Virá dos verdadeiros valores de uma sociedade plural e voltada para o bem comum que conseguirmos plantar a partir de agora.
Mas, para isso, precisaremos de coragem. Coragem de, por exemplo, construir a nossa carreira para fazer o que se gosta, em vez de buscarmos a nossa formação em “onde se ganha mais”. Coragem para romper com as amarras dos terríveis “contra-valores” pautados no consumismo egoísta e desenfreado do “ter” que está destruindo o “ser humano” socialmente e ambientalmente. Coragem de romper com as amarras que submetem o ser humano à economia quando, na verdade, deveria ser o contrário. E, principalmente, coragem de romper com as amarras dos padrões – inclusive econômicos – impostos em nossa sociedade onde, infelizmente, quem não está neles está “fora de moda”, “desatualizado” ou “ultrapassado”. Talvez por isso que haja tanto ódio no mundo pelo “diferente”. Intolerância pela cultura do diferente.
De todos os rompimentos necessários a essa mudança, o da intolerância talvez seja o mais importante e o mais desafiador para essa construção de um novo mundo possível. É algo profundamente lamentável achar que a cultura do outro é pior do que a nossa quando, na verdade, ela é apenas diferente. O grande mestre Paulo Freire, que ensinava preocupando-se em libertar as pessoas formando-as como cidadãs ativas e conscientes, dizia que compreender a cultura do outro, respeitando-a e valorizando-a, é algo indispensável nas relações humanas.
Certo dia, em um projeto voluntário que participo em uma comunidade pobre no Rio de Janeiro, uma senhora disse-me ter vergonha da pouca cultura dela. Ela falou isso logo depois de uma palestra onde um médico ensinava sobre a importância da higiene na preparação dos alimentos. Naquele momento, eu chamei o médico para participar da conversa e perguntei a ele como fazer uma galinha ao molho pardo. Ele me respondeu afirmando, categoricamente, que não fazia a menor idéia, pois nunca havia cozinhado na vida. Logo em seguida, eu me dirigi para essa senhora, aluna do nosso projeto na comunidade e uma exímia cozinheira e dona de casa, e perguntei se ela sabia como preparar a tal galinha ao molho pardo. Ela deu uma verdadeira aula de culinária para nós dois. Ficamos com água na boca. Ao final de sua explicação, eu disse a ela: “D. Maria, se eu estivesse em um navio afundando e precisasse escolher alguém para ficar comigo no bote salva-vidas que teria como destino uma ilha deserta onde o único alimento disponível fosse uma galinha viva, certamente essa pessoa não seria o nosso amigo médico que acabou de dar a palestra sobre higiene no trato com alimentos, mas a senhora”. Depois desse episódio, D. Maria percebeu o seu valor. Ela se sentiu valorizada em função, exatamente, da sua cultura.
O exemplo acima, assim como muitos outros que poderiam consumir linhas e parágrafos de reflexão, é uma prova cabal sobre a necessidade do choque de valores que a nossa sociedade carece. Precisamos de empresas, funcionários e membros de uma sociedade onde as diferentes culturas precisam ser valorizadas e respeitadas. Sei que é difícil essa mudança, mas podemos e devemos tentar alcançar essa utopia mantendo acesa em nossa alma a chama da esperança.
Para terminar, vou deixar aqui uma reflexão que vivenciei durante uma conversa que tive com um amigo meu que é médico. Perguntado por mim sobre como ele enfrenta a possibilidade da perda na morte de seus pacientes, ele disse que não tem medo de enfrentar a questão da morte do homem, mas o que o apavora é quando ele se vê obrigado a enfrentar os pacientes que trazem em si a morte, no fundo de suas almas, da esperança.
*Robson Leite é professor universitário, educador popular, escritor e autor do livro “Fé e Política se Misturam? Uma reflexão necessária”
Fonte: Jornal do Brasil, online - 15/12/2009
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