Raphael Bruno*
raphaelbruno@jb.com.br
UM DOS AUTORES CLÁSSICOS da sociologia moderna, o teórico alemão Max Weber, distinguia como um dos tipos de dominação legítima aquela fundamentada no carisma, entendido como o reconhecimento, em um líder ou grupo de líderes, de um determinado conjunto de atributos valorizados coletivamente pelos governados. O inegavelmente carismático presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um dos poderosos exemplos de que algo da sociologia weberiana ainda pode ser útil para o adequado entendimento do funcionamento da política contemporânea.
Hoje, poucos deixam de reconhecer, por exemplo, que muito dessa qualidade carismática do presidente está relacionada a seu discurso e linguajar simples, à capacidade de falar e passar sua mensagem, muitas vezes sem intermediários, aos corações e mentes dos milhares de brasileiros menos formalmente instruídos. Curiosamente, uma qualidade que um ex-presidente que certamente tinha uma compreensão teórica de Weber mais elevada do que Lula jamais conseguiu colocar em prática com semelhante eficiência.
É evidente que a legitimidade do poder de Lula não tem origens só no carisma. Pelo contrário, este é apenas um aspecto secundário. Para nos mantermos no arcabouço conceitual weberiano, diríamos que ela se assenta muito mais numa dominação racional-legal, ou seja, no reconhecimento da validade das regras institucionais estabelecidas que o fizeram presidente da República. Mas os dois tipos se complementam.
Ao dizer, no seu melhor estilo, que pretende “tirar o povo da merda”, como fez na semana passada em cerimônia do programa Minha Casa Minha Vida, o presidente, para os aplausos do público, ao mesmo tempo preenche seu discurso com demonstrações claras de preocupação e consciência da situação social de amplas parcelas da população brasileira, como também se identifica com esses mesmos grupos ao dar um tratamento direto e compreensível à situação.
A oposição, por outro lado, conseguiu ser precisa na crítica a Lula, coisa rara nos últimos anos. Focou menos na evidente ruptura com as formalidades de postura que são esperadas de um presidente em um evento oficial e se esforçou para apontar que, por mais carismático que seja, o discurso do presidente por vezes carece de fundamentação concreta. Ou seja, muitas vezes é mais discurso que qualquer outra coisa. Pior, denunciou o tucanato: com esse tipo de declaração, Lula parece se isentar de responsabilidade sobre a situação, digamos, escatológica, do povo, após sete anos no Palácio do Planalto. As entrelinhas da fala do presidente são mais sutis que isso, é verdade. Lula trabalha com uma dimensão de tempo, no sentido de que as melhorias das condições de vida da população são um processo em curso, uma tarefa que não será realizada da noite para o dia. Ainda assim, o PSDB se saiu melhor no caso que de costume.
Apesar da relação de identidade que Lula constrói e consolida com a população em discursos como o da semana passada, é mais revelador, para compreender o que o presidente é e representa politicamente hoje, as profundas mudanças pelas quais passou essa relação ao longo do tempo. O Lula e o PT de 1989, por exemplo, não falavam da maneira diluída, como hoje, ao “Brasil, país de todos”, ainda que tal lema contenha uma forte dimensão inclusiva. Falavam a um específico grupo social. A relação de identidade, 20 anos atrás, era determinantemente marcada por um conteúdo de classe, sociologicamente falando, sintetizada no slogan de campanha Trabalhador vota em trabalhador. Entre isso e o genérico Lulinha paz e amor arquitetado pelo publicitário Duda Mendonça, uma montanha de gradativas, mas consistentes e significativas transformações foram operadas no seio da atuação política de Lula e do PT. Da moderação das plataformas partidárias e eleitorais à adesão à institucionalidade política tradicional, passando pela flexibilização das alianças e priorização das atividades parlamentares e governamentais. Essas mudanças, em grande medida, foram o que possibilitaram a chegada ao poder em 2002. Desde então, foram aprofundadas intensamente pelo exercício dele. Mas, como diria o próprio Weber, “o homem não teria alcançado o possível se, repetidas vezes, não tivesse tentado o impossível”.
*Raphael Bruno escreve nesta coluna às segundas-feiras.FONTE: JORNAL DO BRASIL - Segunda-feira, 14 de Dezembro de 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário