Pioneiro da internet brasileira relembra os primeiros passos da rede no país
Demi Getschko conta como foi início da navegação virtual dos brasileiros.
Ele preside núcleo para implementar projetos do Comitê Gestor da Internet.
Demi Getscko (Foto: Arquivo pessoal)
Demi Getschko, de 56 anos, é hoje diretor-presidente do NIC.br, um núcleo criado para implementar as decisões e os projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A história do engenheiro eletricista com a rede, no entanto, começou bem antes: no final dos anos 80, quando ele fazia um doutorado em engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, teve aula com um professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) sobre redes de pacotes, a tecnologia utilizada atualmente na internet.
Desde então, ele participa da história da internet brasileira e ajudou, inclusive, a trazer em 1991 a rede para o país. Mais precisamente para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Por conta dos 40 anos da internet, o especialista falou ao G1 sobre sua experiência pessoal com a rede e também sobre os primeiros passos da rede no Brasil.
O aniversário da internet é comemorado no dia 29 de outubro – nesta data, em 1969, foi realizada a primeira transmissão de uma mensagem entre os servidores da University of California em Los Angeles (UCLA) e o Stanford Research Institute (SRI), em Menlo Park. O objetivo era mandar a palavra “log”, mas somente as duas primeiras letras chegaram. Portanto, a primeira mensagem da história transmitida via conexão de dados foi “lo”.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
G1 – Qual foi seu primeiro contato com a internet?
Demi Getschko - Nos anos 80 fiz doutorado na Poli, onde tinha um curso com um professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) sobre redes de pacotes, que é a tecnologia utilizada na internet. Esse foi o meu primeiro contato com a teoria ao redor de redes como a internet.
G1 - E quando o senhor chegou a usar a rede pela primeira vez?
Getschko - Antes de usarmos a internet, nós usávamos outra rede. No Brasil, desde 1987, nós estávamos nos conectando a redes acadêmicas. A primeira que usamos se chamava Bitnet [sigla para “Because It's Time Network”, uma das maiores e mais antigas redes de grande abrangência usadas principalmente por universidades].
Nos anos 80, a internet começou a ganhar impulso e passou a ser a rede que iria absorver todas as demais.
Nós aqui no Brasil começamos na Bitnet, depois passamos para a HEPNet [high energy physics network] e em fevereiro de 1991 já começamos a trocar pacotinhos com protocolo TCP/IP [a base da infraestrutura de comunicação dos computadores conectados à internet]. Na verdade a popularização da internet aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo nos EUA também.
G1 - O senhor não chegou usar a internet nos EUA antes?
Getschko - Eu cheguei a fazer isso em 1989, mas usar lá não vem ao caso, não é? O que significa usar a internet, usar a Bitnet ou outra rede do tipo? Na época, no final dos anos 80, as redes acadêmicas eram usadas para troca de correio eletrônico e para envio de arquivos. Se você conseguisse mandar e receber e-mail e mandar e receber arquivos você estava bem servido.
A internet teve uma potencialidade maior porque ela podia ter serviços. E a internet virou o que conhecemos depois que a web entrou no ar. Quando você pergunta se eu usei em 1989, usei. O que eu fiz? Bati num terminal de texto um monte de caracteres e mandei correio eletrônico. Não havia imagens, não havia som, desenho, nada. Era esse o serviço que você tinha na rede.
G1 - Você acredita que pode ter sido o primeiro brasileiro a usar a internet?
Getschko - Certamente não. Muitos brasileiros que estavam no exterior fazendo doutorado, mestrado, trabalhando, usavam essas redes muito antes de que nós conseguíssemos usá-las aqui no país.
Quando ligamos o Brasil às redes acadêmicas, trouxemos para cá um serviço que era comum lá. E parte da pressão para trazer isso veio deles. Eles voltavam e diziam: “lá era muito fácil, eu mandava um e-mail para o meu orientador, eles devolviam com um comentário da minha tese”.
Então a Fapesp, como era um órgão que apoiava a pesquisa, tomou para si o fato de trazer pra cá essa facilidade. Eu, como usuário de correio eletrônico, sou muito posterior ao que o pessoal usava lá fora. A minha ação nesse cenário foi ter ajudado a trazer pra cá algo que era usado lá fora.
G1 - A internet só surgiu no Brasil em 1991, na Fapesp. Conseguia explicar para os brasileiros não envolvidos com tecnologia do que se tratava a rede?
Getschko - A rede que nós tínhamos antes da internet era basicamente correio eletrônico. Tinha outra coisa interessante, que eram listas de discussão: elas funcionavam bem e usamos com sucesso no Brasil. No final dos anos 80, nos EUA, já tinha caído a ficha de que era preciso migrar para redes com mais perspectivas para o futuro.
Essa nova rede era a internet, com alguns serviços a mais e a possibilidade de trabalhar com velocidades mais altas do que a Bitnet, que era intrinsecamente lenta e não servia para serviços interativos de passar dados ou conversas. Em 1986, começava a ficar claro para a comunidade científica que, se você queria uma rede com mais futuro e mais serviços, era melhor ir na direção do TCP/IP.
Como estávamos ligados a um laboratório americano de física, nós perguntamos a eles como estavam as coisas. Eles então nos disseram que iriam migrar e injetar na nossa linha também internet. Isso por volta de 1990, e eles acabaram levando a gente de carona. Então, no final do ano, passamos a usar também a internet no Brasil. Em 1996, desligamos a Bitnet.
G1 - Quais os primeiros usos da internet no Brasil? Tinha algum uso para entretenimento?
Getschko - Tinha uso para entretenimento, sim. Um exemplo era uma lista de discussão sobre ópera, na Bitnet, criada por um membro do Rio de Janeiro. E ninguém imaginava que a lista tinha sido criada no Brasil, porque uma lista sobre ópera criada por aqui era meio impensável. A lista era toda em inglês e o pessoal que participava era quem montava ópera em Nova York, Munique. Eles entravam, discutiam e não sabiam que a lista era rodada no Brasil, na Fapesp. Foi um sucesso. A comunidade até hoje existe.
G1 - Tem alguma situação engraçada ou curiosa desse começo do uso da internet no país?
Getschko - Uma coisa que nos divertia muito no começo da Bitnet foi uma lista chamada Brasnet, que era ‘brasileiros na net’ e que unia o pessoal de fora. Tinha um pedaço na costa americana, na Europa e no Brasil, na Fapesp. Era uma lista de brasileiros que estavam no exterior e que trocavam informações sobre onde se encontrava farinha em não sei onde, outro encontrou cachaça em tal lugar. Todo dia tinha mensagens da Rádio Uirapuru de Itapipoca. Ele escrevia uma rádio em texto, dava o noticiário, festa junina, fazia toda a narração das piadas, festas, tudo em texto. Essa lista chegou a ter uns 800 membros.
G1 - Nesses 40 anos de internet, tem algum rumo que a rede tomou que o senhor não goste? Algo que desaprove, que gostaria que fosse diferente?
Getschko - Minha visão é que a internet e as redes acadêmicas têm uma característica de inclusão, de abertura, de oferecimento gratuito de serviços. Quando a internet começou a ficar popular, várias ondas de novos usuários começaram a entrar e a rede conseguiu catequizá-los. Algumas pessoas entravam com propósitos mais comerciais: o primeiro spam, por exemplo, foi por essa época. A rede foi sucessivamente assaltada por iniciativas que fugiam do seu caráter inicial.
Mas estranhamente ou felizmente, ela conseguiu sempre catequizar esse pessoal. A rede acaba sempre se defendendo, aparecem filtros, ela tem uma tendência a se defender contra o que é ruim e a lentamente expurgar essas atividades. Até economicamente. Por exemplo: quando apareceram os primeiros navegadores houve uma tendência a cobrar pelos browsers e depois ficou claro que isso não funcionava, pois apareciam as alternativas gratuitas.
Ainda hoje a rede tem essa característica de estimular soluções que em geral são abertas e grátis. A internet é um lugar onde você pode lançar um serviço novo sem ninguém perguntar quem aprovou isso. No final, quem julga se deu certo é a rede em si.
G1 - O senhor usa internet há quase 30 anos. Consegue acompanhar a velocidade da tecnologia na forma como ela se desenvolve atualmente?
Getschko - Eu faço o possível pra isso. Eu me classifico como imigrante, pois não nasci na rede: ela foi criada quando eu já estava crescido. O pessoal que vai muito bem na rede é aquele que já nasceu com ela existindo, é um pessoal que não consegue imaginar o mundo sem a rede porque quando nasceu ela já existia. São os nativos da rede.
Eu continuo usando tudo que já usava, mas não sou um blogueiro ativo, uso o Twitter de forma menos intensa. O pessoal jovem consegue falar com três pessoas ao mesmo tempo e ainda fazer um joguinho. Existe uma diferença de comportamento em relação à rede.
G1 - Que sites e serviços on-line o senhor não consegue mais se imaginar sem?
Getschko - Eu certamente não consigo me imaginar sem o serviço de busca, outra revolução na rede. O Google, hoje, acho que é uma unanimidade. Para começar é espantoso que isso tenha sido feito. Eu sou um sujeito da ciência da computação e se me perguntassem em 1980 se isso era possível eu ia dizer que não. Mas não só é possível como fizeram. Eu certamente não viveria também sem correio eletrônico.
O resto eu leio notícias em sites de jornais importantes. Mas isso ainda é uma repassagem para o mundo virtual do que eles faziam no mundo real. Lentamente isso vai ficando mais dinâmico.
Já coisas como o Twitter nasceram no mundo virtual e têm um jeitão diferente do que as coisas que migraram. Eu sou um sujeito que fui migrado, não nasci no mundo virtual, então sou meio quadrado nessa área.
Reportagem de Giovana Sanchez e Juliana Carpanez Do G1, em São Paulo
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