quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Feliz ano novo

FREI BETTO*

O ano será novo se, em nós e à nossa volta,
superarmos o velho,
aquilo que já não contribui para
tornar a felicidade
direito de todos

 POR QUE DESEJAR feliz ano novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para afegãos, iraquianos e para os soldados americanos sob ordens de um presidente que qualifica de "justas" guerras de ocupações genocidas? Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes, conscientes dos fracassos de Copenhague, que salvam a lucratividade e comprometem a sustentabilidade?

O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E alertou meu confrade Tomás de Aquino: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo o que fazem, a própria felicidade.

A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou "condenados da Terra".

A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é "a grande aventura do desejo".

Estimulado pela propaganda, nosso desejo exila-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo, reza a publicidade, nos fará felizes.


Desejar feliz ano novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários para o seu rebanho espera que o próximo tenha também um feliz ano novo?

Na contramão do consumismo, Jung dava razão a são João da Cruz: o desejo busca, sim, a felicidade, "a vida em plenitude" manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. Trata-se de uma aventura espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.

Porém, ao mergulharmos nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos ofensivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem nos é generoso; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade.

Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade, escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.

Feliz ano novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. É claro que muitas outras conquistas podem nos dar prazer e a alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, sem desigualdade, sem degradação ambiental, sem políticos corruptos!

Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis, por opção ou por omissão, se constitui num gritante apelo para nos engajarmos na busca de "um outro mundo possível". Contudo, ainda não será o feliz ano novo.


O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório, há que se superar o modelo produtivista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada numa economia solidária.

Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então, com certeza, teremos, sem milagres ou mágicas, um feliz ano novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade, travestida de doces princípios; o ódio, disfarçado de discurso amoroso.

A diferença é que estaremos conscientes de que, para ter um feliz ano novo, é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-se de si mesmo, virar-se pelo avesso e deixar o pessimismo para dias melhores.
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*CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 65, frade dominicano, é assessor de movimentos sociais e escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros. Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004).
FONTE: Folha online, 31/12/2009

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