Rubem Alves*
O que eu queria era um brinquedo. Minhas tias não concordavam. Elas, frágeis mulheres a quem a abstinência do amor tornara frígidas, nada sabiam da alma de um menino. Discordavam da filosofia do Papai Noel. Suspeitavam, inclusive, que ele era dado ao vinho e, como evidência, apontavam para suas bochechas rosadas e felizes. Somente uma pessoa embriagada teria a ideia de andar pelo mundo estragando os meninos com um saco de brinquedos inúteis. Vinham embrulhados em papel colorido, mas eu já sabia o que estava lá dentro. Ou era lenço, ou era meia, ou era sabonete. E eu tinha de fingir surpresa, alegria e gratidão.
Elas não sabiam que o Natal é quando se conta a história de como Deus decidiu que a melhor coisa é brincar. Tanto assim que, contrariando o que diziam os graves doutores da Igreja, o místico medieval Jacob Boehme afirmava que a única coisa que Deus faz é brincar, e declarava também que Adão foi expulso do Paraíso quando deixou de brincar e passou a trabalhar.
Lembro-me de um dos Natais mais felizes que passei, à volta de um brinquedo... Para a felicidade basta um único brinquedo. Se são muitos, o que trazem é confusão.
A gente morava numa casa velha de tábuas largas no assoalho, fogão de lenha, galinhas no quintal e goteiras no telhado. O correio me trouxe um pacote. Vinha do Rio de Janeiro. De uma tia de terceiro grau, que eu nem mesmo conhecia. Meus irmãos e meu pai se ajuntaram à minha volta, enquanto eu cortava os barbantes. Presente da tia Elisinha. Ela devia ser diferente. Conhecia a alma de um menino. Era um brinquedo. Nunca havíamos visto nada parecido. Mas não foi preciso que ninguém nos ensinasse. Era preciso encaixar aquelas centenas de pequenas peças, até que formassem um quadro: o Gepeto na sua oficina, o gato Fígaro, o peixinho Cleo, o Grilo Falante escorregando nas cordas de uma rabeca, três relógios de cuco na parede e o Pinóquio dançando ao som da concertina de Gepeto.
Não me esqueço da alegria que tivemos. Não tenho memória de outro brinquedo que nos tivesse feito brincar tanto...
Lembro-me, também, da alegria que tive a primeira vez que consegui empinar um papagaio. O brinquedo começava bem antes. Porque era preciso procurar e cortar os bambus, cortar as taquaras que deviam ser alisadas, até que as varetas não tivessem farpas. Enquanto isso, na chapa do fogão de lenha se preparava a goma arábica, que era comprada no armazém, em forma de bolas grudentas, parecidas com bolas de goma, e que devia ser derretida na água fervente, numa lata vazia. Havia também a difícil arte de fazer carretilhas, que eram parte do brinquedo.
De tarde, na Praça do Virador, ao lado das três paineiras, pequenos e grandes se juntavam com papagaios na mão, cada qual mais bonito, de todos os tamanhos e formas, e ninguém iria humilhar o seu papagaio, soltando-o com linha enrolada em lata. Eu era pequeno demais, não me metia, ficava só espiando, me roendo de inveja. Até que um dia o vento se compadeceu da minha humilhação, fez meu papagaio subir, e eu fiquei ali, extasiado, vendo aquele milagre, o meu papagaio lá no alto, pedindo mais linha.
Depois, a alegria do pião. Tenho um. Não sei por quanto tempo ele ficou esquecido, numa caixa de brinquedos. Um dia dei de cara com ele. Ele olhou para mim e foi logo fazendo um desafio: “Duvido que você possa comigo!”.
Brinquedo é assim: convida sempre a uma medição de forças, ver quem pode mais. Pois o pião me desafiou, fiquei picado, peguei a fieira, enrolei como sempre fizera, e fiz o pião rodar. Nós dois, eu e o pião, rimos de felicidade. E desde então meu pião não teve mais descanso. E até perdeu a graça. Pois brinquedo, para ser brinquedo, não pode ser muito fácil. Por isso nós dois, o pião e eu, estamos ensaiando novos passos de dança. O que fizemos até agora foi uma simples valsinha. O que queremos agora é dançar tango: jogar o pião no ar e fazer com que ele caia e rode na minha mão, sem tocar o chão. Enquanto eu não conseguir, continuaremos a brincar.
No Natal eu sinto uma dor mansa, saudade da infância que não volta mais. Saudade do meu pai, armando o quebra-cabeça com a gente... Saudade das tardes na praça das três paineiras, carretilha na mão, pés no chão, papagaio no céu. Saudade dos piões zunindo no ar e girando na terra...
A saudade me levou a abrir a porta do armário dos brinquedos velhos. Lá estão eles, do jeito como os deixei: silenciosos, eternos, fora do tempo. São como eram. Brinquedos não envelhecem. Acordam do seu sono e me olham espantados, ao notar as marcas do tempo no meu rosto. E zombam de mim, com uma acusação: “Bem feito! Esqueceu da gente, parou de brincar, envelheceu de repente!”. Mas logo se apressaram a me consolar, vendo a minha tristeza: “Mas pra velhice tem um remédio que só nós guardamos. É só tomar: o tempo começa a rodar para trás e vapt-vupt, o velho fica menino de novo. E esse remédio se chama brincar. Venha brincar conosco!”.
Convite que não recuso. Pego logo um brinquedo e me preparo para voltar a ser criança. Não há nada mais divino que eu possa desejar! E assim, Deus e eu, cada um a seu modo, celebramos o Natal. Pomo-nos a brincar. Enquanto eu brinco de rodar piões, Deus brinca de rodar estrelas. Ou será que as estrelas são suas bolas de gude? Pode até mesmo ser que ele, com carretilha, linha e pés descalços, esteja empinando a linda constelação do Orion, que toda noite aparece bem acima das nossas cabeças.
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular, 20/12/2009
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